2020 está sendo um ano extremamente maluco, em todos sentidos. O audiovisual, assim como todos setores, foi altamente impactado pela pandemia de Covid-19 - produções foram interrompidas, lançamentos foram adiados e o streaming, mais do que nunca, tem sido a principal companhia dos cinéfilos. O CineAlternativo é um blog que comecei no final de 2016, dando então um hiato até 2019, mais precisamente o lançamento de Coringa - crítica que divulguei no dia 9 de outubro. Desde então venho investindo bastante nesse projeto, e quadros muito importantes surgiram, como o Além da Barreira das Legendas (que surgiu especialmente devido a não ter coberto a temporada do Oscar, a qual assisti a 43 indicados, incluindo todos filmes internacionais) e o Musicais. Este começou com um viés diferente, voltado mais para o teatro, mas com o passar do tempo resolvi direciona-lo mais para o cinema musical. Vou falar ainda sobre peças claro, mas de maneira mais diluída. E que filme melhor para recomeçar do que o que me introduziu a esse universo?
Vamos falar sobre a obra máxima de Alain Boublil e Claude-Michel Schönberg, que em 2012 foi adaptada para o cinema pelo diretor Tom Hooper - o mesmo de O Discurso do Rei, A Garota Dinamarquesa e Cats. Os Miseráveis é uma peça francesa que estreou em 1980, ficando famosa após sua adaptação em West End pelo produtor Cameron Mackinstosh (que produziu também O Fantasma da Ópera, Miss Saigon, Cats, Hamilton, entre outros) em 1985.
Baseado no livro de Victor Hugo, Os Miseráveis conta a história de Jean Valjean, um homem que, após roubar um pão para alimentar sua sobrinha faminta, é preso por 19 anos, sendo vigiado pelo impiedoso inspetor Javert. Já em liberdade, ele não consegue se encaixar na sociedade, sendo acolhido por um bispo local. Ele comete mais um deslize e quase vai preso novamente, mas consegue sair ileso graças ao bispo, que o redime de seus erros do passado. Anos se passam, e Valjean forja uma nova identidade, se passando de prefeito da cidade. Acompanhamos então um longo período de tempo, onde surgem personagens que retratam a pobreza e as injustiças sociais cometidas contra o povo francês; com destaque para Fantine, uma operária de uma fábrica de tecidos que é demitida e, à beira da morte, confia a guarda de sua filha Cosette a Valjean. Anos depois, um grupo de estudantes organiza uma barricada, protestando contra o governo vigente - tudo isso enquanto Javert segue em sua obsessiva busca por Valjean.
Os Miseráveis é uma história densa e longa (vide a quantidade de páginas da obra original) que, mesmo com algumas alterações, foi muito bem adaptada ao formato musical. Por sua vez, o filme de Tom Hooper faz juz à grandeza da peça e do livro, mas com alguns adendos. O aspecto mais perceptível é o esforço da produção em ser o mais realista possível, algo admirável dado a temática, mas que acaba prejudicando um pouco o canto. Hugh Jackman e Anne Hathaway são os casos mais visíveis. São grandes atuações que, infelizmente, são prejudicadas por um trabalho vocal não tão bom se analisado tecnicamente. Jackman dá o seu melhor, e mesmo atuando muito bem como Valjean, soa forçado em alguns momentos, como em Bring Him Home - assistindo a primeira vez achei lindo, após ouvir e assistir à montagens da peça acho uma versão não tão boa. Basta ouvir a versão de Colm Wilkinson para sentir o que realmente é Bring Him Home, mas já falamos do Colm. A Fantine de Anne Hathaway é incrível, o Oscar foi totalmente merecido, mas passa pelo mesmo processo relativo à voz. Ainda assim, nada tira o poder de I Dreamed a Dream, que aqui ganha uma versão muito poderosa e emocionante.
O ponto delicado do elenco é Russel Crowe. Sou um dos defensores do Javert de Crowe, mesmo não achando o melhor Javert - o melhor para mim é Norm Lewis, que o interpretou no aniversário de 25 anos da peça. Ainda que limitado vocalmente, o ator trouxe nuances interessantes ao personagem, mas perto dos demais acaba comendo poeira. Mesmo assim tenho um apego imenso à versão de Crowe do personagem; mais que qualquer coisa no filme, é o que me motivou a adentrar nesse mundo dos musicais - o Javert é meu maior dreamrole, e Stars é um dos meus solos preferidos de todos os tempos. Eddie Redmayne está ótimo como Marius, e sua versão de Empty Chairs at Empty Tables é incrivelmente triste. Quem rouba a cena, entretanto, é Samantha Barks, uma das únicas atrizes no elenco que veio do teatro musical, e que já havia atuado em Os Miseráveis antes. On My Own é um dos grandes hinos de Les Mis, e encontra na voz de Barks sua melhor versão. Samantha é, para mim, a Eponine definitiva.
Não sou um grande fã da Amanda Seyfried, nem da Cosette, mas ela funciona bem no conjunto. Aaron Tveit exala energia e esperança; mesmo sendo um coadjuvante, seu Enjolras é um dos melhores aspectos do filme. Sacha Baron Cohen e Helena Bohnam Carter são excelentes atores, e funcionam muito bem juntos como os Thénardier - é a segunda vez que atuam juntos em um musical, após a adaptação de Tim Burton de Sweeney Todd. Vale destacar, por último, a presença ilustre de Colm Wilkinson como o Bispo - Colm é quem viveu Jean Valjean em West End e na Broadway. Sua interação com Hugh Jackman é linda, ainda mais na cena final.
Nos demais aspectos, Os Miseráveis é um filme oscilante. A direção de fotografia é eficiente mas às vezes peca um pouco; algumas composições visuais são lindas, enquanto outras se tornam repetitivas, como o uso constante de planos inclinados e a escolha pela câmera na mão em vários momentos, que nem sempre funciona. A montagem é a que mais sofre o impacto da transposição do teatro, tendo a imensa responsabilidade de manter uma dinâmica semelhante à de palco sem perder a essência da linguagem cinematográfica. Nesse sentido é uma montagem boa, mas nem sempre dá conta, particularmente em momentos como One Day More, que funcionam muito mais em palco do que em tela. O que mais chama a atenção tecnicamente é a direção de arte, que é impecável na reconstrução histórica, e o trabalho de maquiagem (que foi merecidamente contemplado com um Oscar).
Muitas adaptações foram feitas em relação às canções do espetáculo. Várias músicas foram reduzidas e tiveram suas letras levemente alteradas, assim como a ordem de algumas mudou - mais notavelmente On My Own, que na peça abre o Ato II e no filme antecede One Day More. Algumas mudanças, como essa, causam um certo estranhamento (ao menos para mim), enquanto outras funcionam muito bem, como a inversão de I Dreamed a Dream e Lovely Ladies. Do You Hear the People Sing, mesmo que aconteça após Red and Black originalmente, funciona bem na maneira em que entra no filme. Dog Eats Dog foi completamente suprimida, e uma canção inédita foi adicionada (assim como em Cats) - Suddenly é um tanto quanto subestimada, é uma ótima adição para a score. São aspectos, entretanto, que só quem é fã da peça, ou do gênero musical, percebe, não é algo que interfira na experiência de Os Miseráveis; ao contrário de Rent, que também adapta as músicas mas comete deslizes terríveis (histórias para outro momento).
A construção musical de Les Mis, na peça e, consequentemente, no filme, é impecável. Uma das scores mais clássicas de todos os tempos, utiliza de maneira muito inteligente os motiffs (motivos) - por exemplo, Look Down nos apresenta à rivalidade Valjean-Javert, e se repete em diversos momentos na história, sempre associado à perseguição de Javert a Valjean (The Confrontation, diga-se de passagem, é minha canção preferida de musicais). Da mesma maneira, "Come to Me" é uma melodia que surge inicialmente em On Parole, mas ganha destaque em Fantine's Arrest e Fantine's Death, se associando à personagem e a situações tristes envolvendo morte. A melodia do bispo em The Bishop é a mesma da breve canção no cemitério, e do solo clássico Empty Chairs at Emtpy Tables. Valjean's Soliloquy, ou o solilóquio, é exatamente a mesma melodia de Javert's Soliloquy (o nome da música é outro, mas entrega um grande spoiler relativo ao personagem), refletindo a dualidade entre os dois personagens. Posso citar vários outros exemplos, mas esses são o suficiente para demonstrar a genialidade da construção musical de Les Mis. Entra aí um outro problema (leve) do filme. Em vários momentos, melodias que na peça são a mesma são cantadas de maneira um pouco diferente. É um detalhe, mas que faz a diferença.
Em contraste a Miss Saigon, segunda obra mais conhecida de Boublil e Schönberg (e que foi abordada na parte 2), Les Mis aborda situações dramáticas e extremamente trágicas mantendo um tom poético e, de certa maneira, sutil. Miss Saigon, por outro lado, é mais "cru" em sua abordagem, mesmo que (quase que) igualmente bonito e reflexivo.
Os Miseráveis é, inquestionavelmente, um dos maiores musicais de todos os tempos, ficando atrás somente de O Fantasma da Ópera na minha opinião. Adaptar um musical para o cinema é sempre um desafio e, entre erros e acertos, o filme de 2012 é extremamente eficiente nessa transposição, mantendo a essência da peça sem deixar de construir uma identidade própria. Uma das melhores - senão a melhor - porta de entrada para esse universo maravilhoso dos musicais.
Nota:
Filme: 9 / 10
Peça: 10 / 10
Referências:
https://www.youtube.com/watch?v=1ikqU6G6Xgs (acesso em 7/10/2020)
Mais sobre Musicais:
Parte 1: Introdução aos musicais - https://bit.ly/316yCHd
Parte 2: Miss Saigon - https://bit.ly/3ddwfqy
Letterboxd:
lucasnoronha99 (https://bit.ly/3dbE2p5)
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