O ensaio a seguir é uma análise completa da direção de fotografia do filme O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (2001), dirigido por Jean-Pierre Jenuet e com direção de fotografia por Bruno Delbonnel. Importante ressaltar que há muitos spoilers.
O filme conta a história de Amélie Poulain, uma jovem introvertida que, após fazer um ato de bondade, decide ajudar mais pessoas, inclusive ela mesma. É um filme bastante leve cuja temática principal é “amor”. Para isso, Delbonnel entrega uma fotografia onírica, quase como se fosse uma fábula, e para atingir tal resultado utiliza uma câmera Arricam, lentes Cooke S4 Prime grande-angulares e filme Kodak (assim como a maioria de seus trabalhos, Amélie foi filmado de maneira analógica).
A especialidade de Delbonnel, e sua maior característica, é o trabalho de luz, e aqui ele trabalha muito bem com os contrastes, utilizando luzes leves e duplicando a difusão, com a finalidade de produzir uma imagem mais leve. Ele costuma trabalhar com grandes fontes de luz, posicionadas na maior distância possível. Trabalha também com pátinas uniformes, que isolam e destacam os personagens em relação ao fundo. São recorrentes planos onde há zonas muito escuras, e Delbonnel evita usar luzes frontais. E Amélie Poulain reflete muito suas técnicas.
O primeiro aspecto que se nota são os movimentos de câmera, a maioria sendo executados por gruas e eventuais travellings, cobrindo desde cenas simples como reações dos personagens quanto momentos onde há muito movimento (por exemplo, quando Amélie segue Nino e recolhe sua mala, ou então o final da sequência com o senhor cego). É um uso muito inteligente de tal recurso, que traz uma dinâmica maior ao filme e até mesmo um ar “lúdico” e próprio da protagonista.
As imagens da garota pequena que aparecem nos créditos iniciais possuem ISO alto e um filtro retrô, além de trazerem a cor amarelada, que será constante durante o filme. É interessante notar também como as abordagens visuais na apresentação do pai e da mãe de Amélie são muito semelhantes, especialmente no quesito movimento de câmera (é feito, entre outros, um dolly in idêntico). Quando a garota aparece pela primeira vez, no médico, é feito um movimento contrário (um dolly out). É um detalhe sutil mas muito interessante.
Há inclusive trechos nos quais é usada câmera na mão, na maioria das vezes um pouco acelerada na pós-produção, com a intenção de imprimir uma sensação frenética no(a) espectador(a). Tal técnica é utilizada em momentos como quando Amélie pega o trem em busca de Dominique, quando ela guia o senhor cego pela rua e na cena final, andando de bicicleta com Nino. Outro movimento incomum que é muito bem empregado é o giro da câmera, em um momento específico envolvendo Nino. Não tenho certeza como tal momento foi captado (imagino que seja através de grua), mas agrega bastante no visual do filme.
O uso da angulação também é ótimo, especialmente se tratando dos momentos em plongée e contra-plongée. Quando Amélie é criança ela sempre é abordada em planos plongée, reforçando que ela ainda é pequena e ainda está conhecendo o mundo como ele é. O mesmo acontece quando ela se depara com situações amorosas ou sexuais, quando fica mais insegura – destaque para o plano dela diante da sex shop, em um ultra plongée, quase vista 100% de cima. Da mesma maneira, durante a maioria do tempo, ela é filmada em contra-plongée, apresentando-a como quem resolve o problema dos outros (logo está “um nível acima”).
Além disso, é perceptível o uso de alguns planos inclinados, que acontecem em momentos importantes da narrativa, geralmente associados ao amor ou a alguma situação de desconforto. Um exemplo marcante é a relação de Georgette e Joseph, que após se apaixonarem são captados em planos plongée (ela mais que ele) e inclinados – uma tradução da sensação de estar apaixonado, vivendo “nas nuvens”. Então, quando brigam e o sentimento se esvai, ele é captado em um plano normal e ela em um contra-plongée, ambos retos. Considerando o lado controlador de Joseph, é uma decupagem bastante inteligente – em sua mente, ele tem controle de todas ações e falas dela. Outro exemplo é quando Amélie se sente ameaçada ou desconfortável. A câmera dá uma leve inclinada; por exemplo, dentro da sex shop, onde ela se sente mais vulnerável, isso acontece.
Vários planos são centralizados, a maioria da própria Amélie – tal uso é interessante porque mostra que todos temos nossos dilemas, e por mais que algumas pessoas (como a protagonista) queiram ajudar os outros com seus problemas, também vivem muito em função de si. Uma cena onde a composição é bem marcante é quando Nino vai ao café procurar por Amélie, e ela se esconde atrás do vidro, e para disfarçar escreve o menu do dia. Visualmente lembra pensamentos a permeando, que cobrem boa parte da tela, e traduz sua ansiedade relativa a se aproximar dele. Nino também é filmado com a mesma frase sobre a cabeça, mas menos - ele também sente, mas é muito mais seguro quanto a sentir amor. Nesse mesmo momento, ele é visto em um primeiríssimo plano com contorno evidente (devido à luz natural da janela e talvez uma eventual contraluz). Mais adiante na cena, ele se levanta e vai embora, em um plano conjunto que foca em sua mesa e na do lado, que está vazia. Isso diz muito sobre a relação dos dois e, especialmente, o ocorrido na cena em questão.
E não podemos deixar de mencionar outro uso muito inteligente da decupagem, que é quando, perto do final, Amélie decide finalmente ir em direção a Nino na estação, só que é interrompida por um carro de transporte de caixas e, quando se vira, ele sumiu. É um dolly out mesclado na montagem com um dolly in, que chega a um primeiríssimo plano dela, e então vemos um plano geral (talvez o mais geral de todos) e levemente inclinado da estação quase deserta. Não há melhor maneira de descrever seu sentimento de solidão e tristeza.
Amélie Poulain aposta muito também na cor. A direção de arte e os figurinos são impecáveis, e a direção de fotografia não fica para trás. Com muito trabalho feito na pós-produção, em color grading, há um tom de amarelo queimado que permeia o filme, se mesclando com as duas cores predominantes, vermelho e verde. Não somente nos figurinos, a imagem se utiliza dessas cores para transmitir a sensação geral da cena ou dos personagens – o vermelho é associado à intensidade e ao amor, e o verde à estabilidade e esperança, mas também à mesmice.
Alguns exemplos: a casa do pai de Amélie, o café e a casa do pintor são retratados com uma imagem primordialmente amarelada, pois são ambientes do cotidiano e na maioria das vezes permeados de passado. A estação de trem possui um tom verde carregado, até ela conhecer Nino – aí a imagem mistura o verde com um leve tom de vermelho, marcando visualmente que se desenvolverá um sentimento entre eles. O verde é visto também no mercado que ela frequenta, assim como no parque de terror. É interessante notar que em ambos há personagens que confrontam situações amedrontadoras, mantendo suas esperanças – na primeira é Lucien diante das ofensas do chefe, e na segunda é Amélie diante da insegurança amorosa.
O vermelho aparece mais vezes. Aparece na busca por Dominique, na primeira cena de Amélie diante da televisão (onde ela assiste a uma matéria mental sobre sua própria morte), quando ela escreve as cartas de amor falsas do ex-marido da vizinha e sempre que as personagens estão diante de uma situação amorosa ou sexual. Mesmo no café, ele ganha ares mais “vermelhos” quando Georgette e Joseph estão apaixonados, e quando Amélie está em seu quarto vendo as fotos da coleção de Nino – sem contar o evidente uso na sex shop, que é um dos poucos ambientes que adotam luzes azuis, dando um contraste interessante. Uma cena em particular é fundamental para entender o uso dessas cores no filme, quando Amélie está no café (com tons verdes e amarelos) e Nino está na sex shop (com tons vermelhos e azuis). Um plano sucede o outro na montagem, e o trabalho de luz, mais do que qualquer outro elemento, reforça o contraste entre os mundos dos dois.
Flashbacks e trechos relativos a “manias” das personagens aparecem em tons desbotados ou em preto-e-branco, mas mesmo assim trazem nuances interessantes – o passado de Nino é retratado em um amarelo muito sutil, o de Dominique em azul, o momento em que Amélie faz um Z na porta de Collignon é levemente esverdeado, entre outros. Indo para outro aspecto, a profundidade de campo ganha destaque em alguns momentos, direcionando o olhar do(a) espectador(a) para onde as personagens estão prestando atenção – ou não, como acontece às vezes com Amélie, que imerge em seu mundo e tudo ao seu redor fica desfocado.
Por último, e não menos importante, a imagem se torna bastante granulada em alguns momentos, como quando ela rouba o anão de jardim e na imaginação dela relativo à própria morte (simulando um filme antigo). E uma observação, que pode ser interpretação minha, mas o plano do gato no final me remeteu muito ao plano do gato na cena final de Betty Blue, outro filme francês bastante famoso.
REFERÊNCIAS:
https://nofilmschool.com/2016/08/dp-bruno-delbonnel (acesso em 21/10/2020)
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