Uma das grandes descobertas da minha vida de cinéfilo nos últimos tempos foi o trabalho do diretor Takashi Miike, que hoje considero um dos meus cineastas preferidos. Seu cinema é, em uma palavra, intenso - uma espécie de Tarantino japonês que, em 20 anos de carreira, produziu mais de 100 filmes, entre dramas, comédias, histórias bizarras, family friendly, de máfia e até mesmo filmes de super-herói. É mais conhecido, entretanto, por retratar cenas de extrema violência e perversões sexuais estranhas; muito em função disso se tornou um dos diretores mais polêmicos e divisores de público. Já comentei de duas obras dele aqui, Audition (o mais palatável) e Visitor Q. Chegou a vez de falar de outro clássico da filmografia de Miike, um dos mais celebrados e odiados ao mesmo tempo, e com certeza um dos mais brutais: Ichi - O Assassino, mais conhecido por seu título em inglês, Ichi The Killer.
Ao contrário do que o pôster indica, a figura assustadora não se trata de Ichi, e sim de Kakihara, um psicopata sadomasoquista que faz parte da Yakuza. Um dia, seu chefe desaparece, ao mesmo tempo que um sujeito problemático chamado Ichi começa uma chacina contra a máfia japonesa. Apesar do enredo simples, é um filme de várias camadas que, ao meu ver, está longe de ser apenas um filme "para chocar" o espectador. É de fato uma produção extremamente violenta, famosa por cenas como a da suspensão por ganchos e um momento bastante delicado envolvendo a língua de um dos personagens. Indo além da superfície, entretanto, é uma história que expõe os podres da sociedade japonesa e critica a masculinidade tóxica e suas consequências.
Ichi The Killer é baseado em um mangá de mesmo nome, escrito por Hideo Yamamoto, que rendeu também dois prequels, um em anime e outro em live-action - a melhor adaptação é facilmente a de Miike. Yamamoto iria escrever o roteiro do filme, mas devido a um bloqueio criativo foi substituido por Sakichi Sato, o Charlie Brown de Kill Bill. É um roteiro brilhantemente escrito que, mantendo a essência do mangá, apresenta personagens problemáticos e não passivos de empatia, em um universo permeado de violência(s). O personagem-título, Ichi, é bastante "superficial" e desinteressante à primeira vista; é um psicopata confuso e literalmente sem passado nem opinião própria, que é manipulado por tudo e por todos. Uma máquina de matar. Por outro lado, Kakihara é um psicopata cheio de personalidade e com objetivos claros.
Tadanobu Asano, um dos atores mais famosos do Japão (mais conhecido no Ocidente por viver Hogun nos filmes do Thor), é magistral como Kakihara. Ao contrário do personagem no mangá, no filme seu visual é colorido e "caricato" para um chefão da Yakuza, e a atuação acompanha essa energia, como um filme de super-heróis às avessas. Nao Ōmori não fica para trás - mesmo que introspectivo e com poucas falas, seu Ichi é uma bomba prestes a explodir, algo que fica visível em cada gesto e olhar de Ōmori. Shinya Tsukamoto, que vive Jijii, funciona como o cérebro por trás de tudo, manipulando sem pudor todos para atingir seus objetivos. Vale destacar também a atuação de Alien Sun, a Karen, uma das mais carismáticas em cena e - dentro do possível - empáticas na história.
(Alguns spoilers a partir daqui)
O storytelling do filme é algo incrível, de ser estudado. Sato constrói gradualmente o ambiente para o confronto entre Ichi e Kakihara, até que chega o momento do embate, então... não acontece. É um balde de água fria no espectador, mas ao mesmo tempo já é esperado que aconteça isso, dado a natureza de tais personagens. Muitos consideram Ichi The Killer um filme de humor ácido; discordo totalmente. Não há nada engraçado, pelo contrário, é uma história trágica e repulsiva sobre psicopatas e pessoas insanas. No ato final, entretanto, o teor "cartunesco" se acentua, e a violência fica mais exagerada que o normal, entrando no território do caricato, digno de Tarantino - um grande fã de Miike e de Ichi, diga-se de passagem, tanto que reproduziu uma cena deste filme em Kill Bill.
É interessante observar também a presença da tecnologia, mais especificamente televisões e rádios, e sua associação aos atos de violência. Dado momento, um dos capangas de Jijii é morto brutalmente, e seu corpo se encontra dentro de uma TV. Em outro momento, um personagem está prestes a cometer uma ação questionável e a câmera foca em um rádio que está no lugar. Em outro momento ainda, Ichi está enrolado em cobertas jogando jogos de luta, após ter assassinado duas pessoas. É uma representação visual fortíssima de como a geração antiga enxerga a geração nova (afinal, "jogos deixam as pessoas violentas" né?), e o fácil acesso que temos à violência na mídia.
Ainda dentro do roteiro, temos a representação da violência, que foi vista por uns como uma "glorificação" e por outros como uma "obra-prima". Independente disso, como consumidor assíduo de cinema extremo, achei que somente um momento ultrapassou demais o limite, causando desconforto até em mim (uma cena polêmica envolvendo os mamilos de uma personagem). Como a filmografia de Miike mostra, a intenção do diretor era justamente escancarar situações absurdas e deixar que o julgamento moral seja feito pelo espectador - ou seja, se alguém se identifica de alguma maneira com algum personagem ou situação, deve procurar por ajuda. É o mesmo caso de Coringa, que também causou uma certa polêmica quando foi lançado.
(Fim dos spoilers)
Tecnicamente o filme é impecável. A direção de fotografia não tem pudor e é extremamente imersiva, com planos estendidos (típicos em filmes japoneses) e movimentos que acompanham os personagens. Destaque para um momento em que acompanhamos Kakihara e Karen subirem a escadaria até o apartamento de uma conhecida dela. Não há corte, a caminhada é mostrada na íntegra, e isso traz uma sensação imensa de imersão, como se fôssemos cúmplices o tempo inteiro. Por outro lado, a montagem é confusa e caótica, tornando mais intensa a experiência de assistir ao filme. A trilha sonora reforça isso, feita de músicas experimentais (Space on Space é maravilhosa), junto do design de som, que é impecável. A direção de arte é o toque final, assim como os efeitos especiais, que são ao mesmo tempo realistas e exagerados em alguns momentos.
Definitivamente um filme difícil e para poucos, Ichi - O Assassino peca em alguns momentos pelo excesso de violência, mas nada que comprometa demais a experiência. Diante de Audition e Visitor Q, Ichi é o mais simples deles, mas mesmo o mais simples de Takashi Miike está longe de ser simples.
E passe longe de 1-Ichi, a não ser que você goste demais deste e goste de assistir a filmes ruins para rir - que nem eu.
Nota: 8 / 10
Referências:
https://otakunetizenreviews.wordpress.com/2018/06/05/re-view-the-case-of-ichi-the-killer-part-1/ (acesso em 3 de outubro de 2020)
https://otakunetizenreviews.wordpress.com/2018/06/09/re-view-the-case-of-ichi-the-killer-part-2/ (acesso em 3 de outubro de 2020)
Letterboxd:
lucasnoronha99 (https://bit.ly/3dbE2p5)
Comentários
Postar um comentário