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Musicais #4 - Sweeney Todd


Junto de Andrew Lloyd Webber, Stephen Sondheim está entre os compositores mais famosos do teatro musical. Considero os dois como os pilares do gênero, os maiores de todos os tempos. É muito interessante perceber os constrastes entre as obras deles: Lloyd Webber costuma fazer arranjos grandiosos, executados por grandes orquestras, além de focar na construção da melodia, enquanto Sondheim é quase que um perfeccionista, prezando por métricas diversificadas e focando nos aspectos mais técnicos - claro que trazendo também melodias memoráveis. Uma de suas peças mais famosas, Sweeney Todd estreou na Broadway em 1979 e ganhou uma gravação oficial em vídeo em 1982, mas foi em 2007 que ganhou fama para além dos palcos, com a adaptação dirigida por Tim Burton.

Sweeney Todd - O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet conta a história de Benjamin Barker, um barbeiro inglês que é acusado injustamente de um crime e, por conta disso, é afastado de sua mulher e sua filha pequena. O responsável por isto é o Juiz Turpin, que o fez para roubar a esposa do barbeiro para si. Anos depois, Barker retorna para Londres junto a um marinheiro, Anthony, e descobre que o local em que trabalhava agora pertence à Senhora Lovett, uma viúva que vive em condições extremamente precárias e vende tortas tão precárias quanto. Ela então revela que a esposa dele tirou a própria vida devido ao ocorrido e o Juiz está cuidando de sua filha, Johanna. Barker adota o nome de Sweeney Todd e decide se vingar de Turpin. Ele e Lovett iniciam um negócio juntos - ele atende clientes e os assassina, enquanto Lovett aproveita os corpos para serem "ingredientes" especiais de suas tortas. Assim eles ganham fama e conquistam inúmeros clientes, que não fazem ideia do processo de produção das tortas. Só que o final está longe de ser feliz: a vingança e a ganância consomem os personagens, levando a um final extremamente dramático e trágico.


A PEÇA

Swing your razor wide, Sweeney, hold it to the skies! (Crédito: Divulgação)

Baseado em uma história publicada na metade do século XIX por James Malcom Rymer e Thomas Peckett Prest, a peça de Sondheim é toda construída musicalmente em cima do Dies Irae, um tema que comumente era tocado em funerais e, por consequência, foi associado à morte. Muito usado em trilhas sonoras de modo geral (filmes como Star Wars e O Rei Leão se utilizam dessa melodia em momentos de tristeza, e o tema de abertura de O Iluminado é uma reprodução quase que literal dela), o Dies Irae aparece de todas formas possíveis, "guiando" o protagonista à tragédia. É perceptível também a estrutura não convencional típica de Sondheim - os tempos mudam abruptamente, melodias improváveis se cruzam e há um trabalho extremamente virtuoso por parte do compositor. São músicas que exigem muito vocalmente do ator e da atriz que interpretam os papéis.

(Daqui em diante haverá alguns spoilers)

O melhor exemplo disso é Epiphany. Um momento-chave da peça e do filme, Sweeney quase consegue se vingar de Turpin, mas é interrompido por Anthony. Ele então enlouquece e canta um solilóquio que muda abruptamente de melodia no meio da música. Isso representa a instabilidade emocional do personagem, que divaga entre a raiva advinda da vingança e a vontade de reencontrar a filha. Em outro momento, Anthony e Johanna fazem suas juras de amor um ao outro e ele promete salvá-la das mãos de Turpin, em uma música lindíssima, Kiss Me, que foi cortada do filme (mais adiante falo sobre a transição teatro/cinema). As duas melodias são bastante diferentes, e mesmo assim se encaixam de uma maneira única - um dos melhores usos de melodias cruzadas, junto a One Day More de Les Mis e o final de O Fantasma da Ópera.

A estrutura da peça é muito interessante, tendo um cenário relativamente simples que é movimentado em palco por membros da própria equipe. A sensação é de uma trupe de teatro, reforçada, diga-se de passagem, pelas Ballads of Sweeney Todd que permeiam a história. Ao contrário do filme, que carrega bastante nos aspectos sombrios, a peça é um tanto quanto caricata, às vezes sendo quase uma obra de humor ácido. Isso é reforçado pelas atuações, especialmente da dupla de protagonistas, vividos por Len Cariou (na gravação de 1982 por George Hearn) e por Angela Lansbury. Os dois (ou três) brilham como Sweeney Todd e Senhora Lovett, conseguindo imprimir tanto o humor absurdo das situações quanto a carga dramática.

As letras (também de autoria de Sondheim) são outro aspecto muito interessante, trazendo um comentário social muito forte - destaco A Little Priest, que termina o Ato I, na qual Todd e Lovett cantam (tradução livre):


São homens devorando homens, minha querida

E quem somos nós para negar isso aqui?


A crítica social é intensa. Em outros momentos da música eles mencionam o fato de os "de baixo" servirem aos "de cima", e que finalmente os "de cima" servirão aos "de baixo", e fazem comentários irônicos a respeito de diversos tipos de pessoas - padres, advogados, políticos, marinheiros, poetas, atores, entre outros. Essa música, junto a Epiphany (que a antecede) e The Ballad of Sweeney Todd 1 são as músicas chave para compreender a mensagem por trás da peça, bem como seu tom irônico. Pessoalmente, considero Epiphany a melhor composição de todas do Sondheim, e uma das melhores do teatro musical como um todo.


O FILME

A dupla clássica de Tim Burton ataca novamente. (Crédito: Divulgação - Warner Bros.)

Sweeney Todd é mais conhecido, entretanto, pelo filme de Tim Burton. O primeiro aspecto importante em relação ao longa é a presença do próprio Sondheim, que coordenou a produção da trilha sonora. Várias adaptações foram feitas, especialmente na redução de números musicais - inúmeras músicas foram cortadas ou reduzidas, mais notavelmente todas Ballads of Sweeney Todd, Ah Miss, Kiss Me (uma lástima) e Wigmaker Sequence, com o intuito de deixar a narrativa mais dinâmica para padrões cinematográficos. O arco de Lucy foi consideravelmente reduzido (na peça sua participação é muito maior), assim como o de Johanna. Alguns solos de personagens coadjuvantes também ficaram de fora, mas a maioria já não eram cantados nas performances mais recentes (é o caso da reprise de Johanna por Turpin, Parlor Songs e a canção de ninar de Lucy). São muitas mudanças, que transformam o filme em uma obra bastante distinta da peça - o que de maneira alguma é algo ruim.

A atmosfera entre as duas obras é relativamente diferente, e isso se deve muito à assinatura do diretor. Não apenas no tradicional casting de Johnny Depp e Helena Bohnam Carter; é perceptível a estética visual de Burton, que casa muito bem com as temáticas e acontecimentos da história. Tecnicamente não é um filme surpreendente, mas funciona bem - a direção de fotografia dialoga com a atmosfera sombria através de planos subexpostos, que é reforçada pelo fato de grande parte das cenas se passarem durante a noite. A montagem é eficiente também, e bastante discreta. O roteiro, além das considerações musicais, adapta algumas situações (relativas ao final especialmente), causando alterações consideráveis nos rumos da história. Na peça há, por exemplo, uma cena na qual Johanna dá um tiro no dono do manicômio e os loucos escapam - ela e Anthony se escondem na multidão. No filme, Anthony consegue rende-lo e o tranca com as prisioneiras, escapando com Johanna. Esse momento dos loucos na rua é uma parte importante do número final, que no filme não aparece.

O principal aspecto, entretanto, é as interpretações. Johnny Depp é tido por alguns como um ator que imita ele mesmo em todos papéis, mas acho sua interpretação de Sweeney uma boa interpretação. Não é a melhor (provavelmente essa é a de George Hearn na minha opinião), mas ele adiciona camadas interessantes ao personagem. A Senhora Lovett de Bohnam Carter é... diferente da de Lansbury, e isso é ótimo. Uma não invalida a outra. Bohnam Carter é uma ótima atriz, e acrescenta muito à personagem, especialmente nos minutos finais. A Johanna é um papel que exige muito vocalmente, e Jayne Wisener alcança bem as notas, mas não tem nem um terço do carisma de Amanda Seyfried - que vive Cosette em Os Miseráveis, uma personagem soprana narrativamente semelhante à de Wisener. Os demais no elenco estão bem, com destaque para Alan Rickman (uma das grandes perdas dos últimos anos diga-se de passagem) e Sacha Baron Cohen.

Mesmo que diferente, o filme de Tim Burton é uma ótima porta de entrada para a peça, e o trabalho, de Sondheim. Pessoalmente, prefiro peça, mas o filme não deve em (quase) nada. 


Stephen Sondheim. (Crédito: Divulgação)

Sweeney Todd é uma das peças mais famosas de Stephen Sondheim, que fez também Caminhos da Floresta (que teve uma adaptação... questionável), West Side Story (que em 2021 ganhará um remake dirigido por Steven Spielberg), Company, Sunday In the Park with George, Pacific Overtures... suas obras não são tão conhecidas quanto às de Andrew Lloyd Webber, mas ele é um dos maiores nomes no meio musical. Ele inclusive tem alguns musicais de um ato no currículo, como o polêmico Assassins, e escreveu a canção Send In The Clowns - mais famosa na voz de Frank Sinatra, que inclusive apareceu no recente filme Coringa, mas que na verdade faz parte do musical A Little Night Music. Ainda assim, Sweeney Todd é o musical que melhor exemplifica seu trabalho, e um dos mais acessíveis.


Nota:

Filme: 8 / 10

Peça: 10 / 10


Referências:

Sweeney Todd: How To Adapt (Bobby Burns) - https://bit.ly/32015yK

How the Music Spoils Sweeney Todd (Sideways) - https://bit.ly/35KIp78

Analysis of "Epiphany" from Sweeney Todd (Musicals w/ Cheese) - https://bit.ly/37X5wOE


Mais sobre Musicais:

Parte 1: Introdução aos musicais - https://bit.ly/316yCHd

Parte 2: Miss Saigon - https://bit.ly/3ddwfqy

Parte 3: Os Miseráveis - https://bit.ly/2HTRbHx


Fiz uma análise aprofundada a respeito da direção de fotografia do filme, disponível em:

https://bit.ly/2TFuZnu


Letterboxd:

lucasnoronha99 (https://bit.ly/3dbE2p5)

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