Certo. Vamos lá.
Minha ideia inicial era falar sobre outro filme, mas acabei não conseguindo postar a segunda crítica da semana passada. E então assisti a esse filme, meu primeiro contato com a filmografia de Michael Haneke, a qual conhecia muito por cima. E preciso falar sobre esse filme, porque é um dos mais intrigantes que já assisti na minha vida, em todos sentidos.
Violência Gratuita, como foi traduzido aqui no Brasil (uma tradução um tanto quanto interessante), conta uma história corriqueira de terror: dois serial killers, Paul e Peter, invadem a casa de uma família, fazendo-os reféns. Eles não parecem ter uma motivação específica, somente fazer jogos com essa família - assim como o título original, Funny Games, indica. E é isso. Só que não. O primeiro aspecto interessante no filme é a linguagem, extremamente peculiar e proposital. Haneke subverte completamente a expectativa do público, que em tese recorre ao filme em busca de "violência gratuita" - quase nenhuma violência gráfica é mostrada, e os planos são extensos e estáticos. Soma-se a isso o fato de a maioria dos momentos acontecerem durante o dia, logo há uma iluminação mais clara do que o comum para um filme de terror, e há a constante quebra da quarta parede. É assim que, então, Haneke nos torna cúmplices da dupla.
(Análise detalhada do roteiro, logo haverá spoilers)
O roteiro é impecável, facilmente um dos roteiros mais bem escritos dos últimos tempos e - ouso dizer - da história do cinema. Muito além de uma história de invasão domiciliar, Funny Games fala sobre violência, e como somos expostos voluntariamente à ela. Ao colocar Paul como o protagonista, e com quem nós, espectadores, conversamos, Haneke provoca o espectador - naturalmente torcemos pela família, mas ao mesmo tempo estamos lá para presenciar as barbáries, senão por que estaríamos assistindo ao filme? Nesse sentido, a quebra da quarta parede é fundamental, deixando-nos mais desconfortáveis em relação a isso. O melhor exemplo é a cena do controle remoto. Assim como sugerido por Paul em um desses diálogos, nós buscamos pelo "final feliz", onde a família consegue escapar ilesa, e Haneke nos entrega esse final - ao menos por alguns segundos, até ele literalmente rebobinar a cena, e o assassino está segurando o controle. Estamos imersos na história, moralmente torcendo pela família mas ao mesmo tempo esperando que alguma tragédia aconteça em cena. Só que não temos controle da situação. É o diretor, através de seu personagem, utilizando-se do cargo de "direção" para se direcionar ao público e brincar com o limiar entre a ficção e a realidade.
Não é a toa que, após a última morte, a dupla de assassinos conversa sobre a ficção ser realidade, então indo em direção à casa da vizinha, e Paul nos olha com um olhar sarcástico. Talvez seja só um filme, mas por trás do filme há uma realidade, e se nós vamos atrás disso - ou ainda, gostamos de um filme assim - não seríamos parcialmente culpados? É esse o diferencial da obra de Haneke das demais produções de cinema extremo. Ele não nos entrega a "violência gratuita" que tanto esperamos, mas cria uma atmosfera imersiva para nos transformar em cúmplices, e ao mesmo tempo reféns da própria história, e então atingir o fundo da nossa alma e perguntar - o quão culpado você, espectador, é pelo acontecido? É o melhor uso da metalinguagem que já vi na minha vida de cinéfilo. E isso é reforçado pelos aspectos técnicos.
(Final dos spoilers)
Tecnicamente o filme não fica para trás. As atuações são ótimas, com destaque para Arno Frisch (que protagoniza outro filme de Haneke, O Vídeo de Benny), que está perfeito no papel de Paul. Ele consegue ser assustador e "engraçado" ao mesmo tempo, sem contar o olhar final, que mesmo sendo um gesto simples faz toda a diferença no impacto. A direção de fotografia e a montagem, mais do que nunca, atuam juntas para intensificar a mensagem proposta pelo diretor, que é reforçada pelo design de som. Sempre gostei de tomadas lentas, e aqui há uma das tomadas mais provocativas e... estáticas de todos os tempos. Primeiro que esta é antecedida pelo ato mais cruel do filme, que não é visto, e sim ouvido - uma montagem intelectual perfeitamente executada. Chega-se então ao famoso plano geral de 11 minutos, o qual na maioria das vezes permanece estático. Se não houvesse toda construção anterior seria um tiro no pé, mas nesse ponto do filme o espectador já está imerso na narrativa, e a longa duração somente auxilia na representação da realidade - afinal, na vida não há cortes.
Faz um tempo que não assisto a um filme que posso dizer que é perfeito - Funny Games conseguiu essa façanha. Graficamente ele não é surpreendente, mas foi talvez um dos que mais me atingiu, de uma maneira extremamente inesperada e avassaladora. Depois de Martyrs, considero um dos filmes "perturbadores" mais geniais da história. Importante mencionar que em 2007 foi feito um remake americano, também dirigido por Haneke, e estrelando Tim Roth e Naomi Watts, que pelo que sei imita quadro a quadro o original. Como não assisti a ele ainda não posso dizer qual é melhor, mas imagino que o impacto seja o mesmo.
Para uma análise mais detalhada dos simbolismos do roteiro, recomendo o vídeo do canal Elegante (https://bit.ly/37le8yf) e o texto de Bernardo Vasques para o portal Escotilha (https://bit.ly/3jhuPNg). São análises muito interessantes, evidentemente recheadas de spoilers, que explicam o método de Haneke e e como ele manipula os espectadores.
Nota: 10 / 10
Letterboxd:
lucasnoronha99 (https://bit.ly/3dbE2p5)
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