Direção de fotografia é uma das áreas mais importantes do processo audiovisual, e uma das mais difíceis também, especialmente por lidar direto com tecnologia. Os ensaios a seguir escrevi para um curso que fiz na Academia Internacional de Cinema (AIC) relativo à essa área. São textos mais técnicos e, evidentemente, recheados de spoilers.
01) Dark (2017-2020)
Tendo como um dos pilares o efeito de déjà-vu, a fotografia (especialmente a decupagem) reforça essa sensação, trazendo planos semelhantes, como exemplo as mortes de Martha e Jonas. Mas o que mais me chamou a atenção foi a utilização dos planos aéreos da floresta, que serve como transição entre situações, tempos e mundos diferentes. Cada plano é único, e é interessante notar como as sequências no passado têm tons mais quentes (variações de bege e tons avermelhados) e as do futuro tons mais frios (especialmente azulados). Com certeza houve um reforço no processo de colorização, mas acredito que desde a pré-produção foi algo pensado pela direção e direção de fotografia. É um elemento fundamental para trazer a atmosfera, passando a imagem de um passado um tanto quanto nostálgico e vivo e de um futuro tecnológico e triste.
Outro momento que me chamou a atenção foi um movimento de câmera no episódio 5 da terceira temporada, onde Jonas e Martha estão conversando, e a câmera dá uma volta em torno deles, mudando de eixo (semelhante ao que é feito na cena do interrogatório do Coringa em O Cavaleiro das Trevas). Sabendo o final, faz todo o sentido. Traduz de maneira bem sutil, mas visualmente impactante, a dualidade Adam/Eve (ou Adão e Eva), que é o cerne da narrativa da série, especialmente nessa temporada.
Vale destacar também o zoom, presente em alguns momentos de tensão. Uma cena que se utiliza desse recurso é quando Egon e Doris se separam. A câmera se aproxima lentamente dos dois (provavelmente usando zoom), em um plano fixo, enquanto o diálogo ocorre.
Um último aspecto que trago é a mudança de proporção de tela entre os mundos de Jonas e Martha e o mundo de Tannhaus, que originou estes dois. A proporção do de Tannhaus é próxima à usada em filmes (nota posterior: 2:35:1), propícia para exibição em tela grande, enquanto a de Jonas e Martha é mais tradicional de séries e produtos audiovisuais feitos para telas menores (nota posterior: 16:9). É uma diferença sutil mas que diz muito, dado o papel de cada mundo na narrativa. Aconteceu o mesmo em um episódio do crossover Crise Nas Infinitas Terras (do universo compartilhado da DC na televisão), onde o Flash encontra sua versão vista nos cinemas, e a proporção de tela traduz isso.
02) Coringa (2019)
Baseado nos quadrinhos da DC Comics, o filme, além de ter como protagonista Arthur Fleck, tem como personagem principal também a cidade de Gotham. Ela ganha vida especialmente através da direção de fotografia, que a capta sob filtros sombrios e azulados, além de planos gerais, que destacam o tamanho pequeno dos moradores (particularmente Fleck) diante da injustiça social e criminalidade vigente.
Um plano o qual Lawrence Sher, diretor de fotografia, comenta em um podcast para a American Cinematographer, e que é fundamental para a transformação de Arthur em Coringa, é o momento após o assassinato no metrô, quando ele corre para o banheiro e dança uma valsa, banhado em sangue. A cena estava escrita de maneira bem diferente no roteiro, e o take utilizado no corte final foi um improviso entre Phillips, Joaquin Phoenix (que vive Fleck) e o operador de câmera, Geoffrey Haley. É um momento bastante poético, no qual não apenas o personagem dança, a câmera dança com ele, e a iluminação esverdeada do ambiente reforça essa sensação de liberdade atingida neste momento.
Um pouco antes, Sher pontua outra cena que marcou sua experiência na filmagem do filme, que foi o trajeto de Arthur no beco, indo em direção ao banheiro. Sua sombra está adiante dele mesmo, e isso é um ótimo exemplo de como a composição do filme é genial. É um dos primeiros momentos – senão o primeiro – em que ele dá voz a seu lado “Coringa”, e a presença da sombra simboliza muito esse questionamento interno, essa dualidade, além de ser uma referência à estética do expressionismo alemão. O Nosferatu está solto.
O uso das angulações plongée / contra-plongée também é um aspecto muito bem pensado. O filme abre com planos nas angulações normal e plongée, reforçando a incapacidade de Arthur de se posicionar diante das injustiças que sofre, e ao desenrolar da história, a câmera vai utilizando cada vez mais planos em contra-plongée (mais notavelmente a dança na escadaria), que dialoga com o desenvolvimento do personagem.
Vale destacar também o uso muito inteligente de planos fechados, em momentos mais intimistas, e um aspecto que provavelmente faz parte da visão do diretor (mas que dialoga com a direção de fotografia), que é o fato de Arthur estar presente em todas cenas. Isso reforça ainda mais a possibilidade de os acontecimentos estarem sendo contados de maneira distorcida, mediante somente sua perspectiva.
03) Clímax (2018)
O filme é quase inteiramente feito em um plano sequência, e com o desenrolar da história vemos os efeitos das drogas nos personagens – para captar esta sensação, a direção de fotografia utiliza primariamente uma objetiva grande angular de 12mm (Zeiss High Speed), e investe bastante no movimento de câmera. Perto do final, quando a situação se torna mais caótica, a câmera rotaciona em 360º e passa uma cena inteira de cabeça para baixo.
A opção de uma lente grande angular é interessante por causa das deformações que estas proporcionam, o que, dentro da narrativa, é um reflexo da sensação de torpor e alucinações dos personagens. Além disso, uma lente fixa faz necessário o movimento espacial da câmera acompanhando os personagens, transformando-a em um personagem também. Outro aspecto relativo à lente fixa é que, ao mesmo tempo em que favorece a execução dos números de dança, traz uma sensação maior ainda de angústia e claustrofobia quando há planos mais fechados.
Além dessa, uma outra lente foi utilizada, na cena da televisão – possivelmente uma teleobjetiva, dado que todos filmes e livros ao redor estão com os títulos bem nítidos. A intenção de tal escolha faz todo o sentido, pois as obras mostradas em tela, além de serem influências para Noé, dialogam com o filme em si e o que acontece nele. E é o único respiro que há no filme, justamente momentos antes dos acontecimentos principais começarem, e quando somos introduzidos aos personagens.
04) Sweeney Todd - O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet (2007)
Uma das melhores adaptações de musicais para o cinema, Sweeney Todd acompanha a história de Benjamin Barker, barbeiro que, após ser condenado por um crime que não cometeu, assume um novo nome e busca vingança do juiz que o condenou e destruiu sua família. A marca registrada de Tim Burton é a estética “dark” e sombria, que é reforçada aqui pela história trágica e triste, e o trabalho do diretor de fotografia Dariusz Wolski. O filme inteiro possui uma imagem sub exposta e minimalista, com somente uma cena onde a exposição é mais clara – cena esta que se passa na imaginação de uma das personagens, portanto possui um teor imaginário e surreal.
Tal decisão por parte da DF é fundamental para a construção da atmosfera, e complementa brilhantemente a estrutura musical concebida pelo compositor Stephen Sondheim. A trilha sonora da peça foi feita toda em cima do dies irae, tema associado a funerais e morte, e o trabalho de Wolski aponta para essa direção: Sweeney age literalmente nas sombras, em uma Londres triste e sem esperança. Essa ideia é reforçada também pela predominância de tons azulados, cor comumente associada à tristeza e à depressão, que varia com tons quentes (geralmente presentes quando há iluminação diegética ou flashbacks).
Há muito sangue em tela, e uma cena em que o vermelho se destaca é a cena final, que é quando a maior tragédia acontece e a emoção dos personagens está mais à flor da pele. Tons amarelados são bastante presentes também, em momentos de nostalgia ou de alegria – destaque para a reabertura da loja de tortas da senhora Lovett. A transição quente/frio também está muito associada à transição, respectivamente, Benjamin Barker/Sweeney Todd, um aspecto bem sutil mas que enriquece ainda mais a DF.
O ISO aplicado provavelmente foi baixo, pois os grãos são quase invisíveis. É uma escolha interessante, que deixa a imagem mais ainda com aspecto de sombra. Muitos desses aspectos, entretanto, parecem ter sido aplicados na pós-produção, especialmente relativo a tratamento de cor.
Não há uma grandiosidade técnica na DF do filme, mas o minimalismo proposto funciona muito bem, pois além de traduzir visualmente a energia da cidade, está diretamente ligado às emoções e percepção de mundo dos personagens, especialmente o protagonista, Sweeney Todd.
Meu gênero preferido é musicais, e Sweeney Todd é um dos meus musicais preferidos. Tendo ouvido e assistido à peça, é interessante fazer o exercício de analisar a transposição do teatro para o cinema, sempre um desafio para qualquer realizador. A adaptação de Tim Burton foi uma das mais certeiras nesse sentido, não apenas por causa da presença do idealizador da peça na equipe criativa, mas especialmente pela atmosfera transmitida. Musicalmente há muitas diferenças entre as duas obras, mas apesar de tudo, aspectos como a DF são muito importantes para manter não apenas a ambientação mas a identidade da obra, e em Sweeney Todd foi muito bem executada conceitualmente.
Comentários
Postar um comentário