Pular para o conteúdo principal

Além da Barreira das Legendas #5 - Visitor Q (2001)

Meu gênero preferido de filmes é musicais, mas também gosto muito de cinema extremo. Sempre gostei de assistir a filmes dramáticos, intensos e, eventualmente, violentos. Então, ao passo que fui conhecendo o cinema extremo, caí no gosto e quis assistir mais filmes do gênero. Dois filmes que se enquadram na categoria e já tiveram crítica aqui no blog são Martyrs (um dos meus filmes preferidos) e Audition. Pensando em explorar mais esse meio, trago outro clássico de Takashi Miike - não, ainda não é Ichi the Killer, esse fica para outro momento. Um filme bastante inovador, original, intenso, experimental, perturbador e estranhamente engraçado:

Visitor Q (2001)


(ALERTA SPOILERS)

É impossível falar sobre Visitor Q sem entrar no território de spoilers, então vamos lá. O filme mostra o cotidiano de uma família japonesa extremamente problemática. O pai, Kiyoshi Yamazaki, é um jornalista decadente, afastado do cargo após ser abusado sexualmente durante uma reportagem. Numa tentativa de voltar à ativa, ele decide gravar seu cotidiano, com a finalidade de denunciar a situação deplorável que vive. Para isso, ele começa fazendo sexo com a própria filha, que fugiu de casa e virou prostituta. Os problemas não param por aí. O filho mais novo sofre bullying na escola e desconta na mãe, que esconde da família que é viciada em heroína, e que se prostitui para sustentar seu vício. Nesse cenário surge uma figura misteriosa, o "visitante Q", que é um homem que atingiu a cabeça de Yamazaki duas vezes com um pedra, o levando para casa. Pouco se sabe sobre ele, ou o que ele está fazendo na casa deles, mas sua presença provoca mudanças na dinâmica familiar.

Visitor Q é um dos filmes mais estranhos que já vi na minha vida. Mais que qualquer outro de Miike, leva o espectador de um extremo a outro, da repulsa ao riso, às vezes em questão de minutos. É um retrato bastante exagerado e caricato da sociedade japonesa e de seus problemas. Trabalha também com diversas situações consideradas tabu na sociedade de modo geral - incesto, violência, dependência química, sadomasoquismo, necrofilia, entre outros. Mais para o final do filme, o lado caricato é acentuado, rendendo situações tão absurdas e desconfortáveis que nos fazem rir (o assassinato dos agressores do filho por exemplo, digno de um filme do Tarantino). As atuações reforçam essa intenção.

Quem se destaca mais, entretanto, é a personagem da mãe, vivida por Shungicu Uchida. O arco da personagem é incrível. Ela começa como a personagem que mais sofre (é agredida pelo filho, ignorada pelo marido, dependente de heroína) e aos poucos vai ganhando uma voz, até o ponto que é ela quem salva os outros. A descoberta do leite é muito simbólica, ainda mais considerando que quem a faz descobrir é o estranho, o que vem de fora. No fim das contas, numa lógica distorcida, ela é a heroína do filme (trocadilho infame).

Um filme sem pudor. Em todos os sentidos. (Crédito: Divulgação - CineRocket)

O melhor do filme, ainda assim, é o ato final. O humor ácido se acentua, e o absurdo da situação vira motivo de risada - no meio do caos a família se reconecta, e em meio a rigor mortis e despachamento de cadáveres, a mãe, até então a maior vítima da situação, cura seus ferimentos. Por trás de tudo o que está acontecendo em cena, há um retrato visceral e cru da sociedade japonesa, sem pudor nenhum. O "visitante Q" (seria uma representação do próprio cineasta?) conseguiu modificar o cotidiano da família no fim das contas, e fez isso ao nocautear com uma pedra não apenas os personagens, mas também os espectadores.

Vale lembrar que a história é parcialmente baseada em Teorema, de Pasolini (filme que ainda não assisti, por isso não mencionei antes na crítica), e que faz parte de uma série de seis filmes japoneses chamada Love Cinema. Os seis foram dirigido por cineastas independentes, e Visitor Q é o sexto e último filme. Todos são exercícios de baixo orçamento com a finalidade, também, de experimentar o novo formato digital e suas possibilidades.

Independentemente de tudo, Visitor Q é um filme que se destaca por sua excentricidade. Acima da repulsa, acima do riso, é uma crítica social muito bem construída e impactante. Como todo título de cinema extremo, não é para qualquer espectador, mas recomendo fortemente.

NOTA: 9 / 10

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Thunderbolts* salvou minha vida

Nunca achei que diria isso, mas obrigada, Marvel Studios. Thunderbolts* (destaque para o asterisco, é essencial), bem resumidamente, traz figuras em segundo plano no grande espectro do MCU se unindo e formando uma equipe improvável, de anti-heróis e vigilantes com um passado conturbado e que, sem exceção, lidam com problemas familiares, pessoais e de saúde mental. Na verdade, é um filme sobre saúde mental, vindo da Marvel Studios. Coisa que nem no cenário mais otimista imaginaria, especialmente vindo após o horror que foi Capitão Falcão vs Harrison Ford Vermelho (desculpa, Sam Wilson, torço que você tenha um arco de redenção no futuro com filmes melhores). Dessa maneira, eu, muito mais alinhada ao DCU do James Gunn ultimamente, e cética com o trabalho da Disney com esse multiverso compartilhado, decido assistir à nova produção capitalista da Marvel Studios. E quem diria... mudou minha vida? Crédito: Divulgação - The Walt Disney Company (Alerta de spoilers) Entremos no filme. Como retra...

Reals?

Quantas vezes você acessa o Instagram em um dia? Como se sente postando e rolando os infinitos stories? E quando seu post não recebe a quantidade de likes que você desejava, como você se sente? Em um dia em que a Wi-Fi cai, como você lida? Se você não consegue postar aquela foto que quer tanto, ou atrasa, qual o sentimento? Qual o real valor do seu reels? Quantas perguntas mais para traduzir o fluxo de informação da Internet hoje em dia? Voltemos um pouco. Há décadas atrás, as gerações agora mais antigas viviam sem computador, celular, redes sociais, IAs, nada das inúmeras facilidades que a Internet nos proporciona hoje em dia. A comunicação, assim como muitos aspectos da sociedade, evoluiu muito com o passar do tempo. Não necessitamos mais (necessariamente) mandar cartas para nos comunicarmos com nossos amigos, temos o WhatsApp e o Instagram. Vinis, fitas VHS e até CDs e DVDs já caíram em desuso. A tecnologia nos proporciona facilidades como os streamings - para que ir no cinema se po...

O Cadáver da Inteligência Artificial (uma entrevista com o ChatGPT)

Nós vivemos em um tempo de avanço de tecnologias e novas maneiras de enxergar o mundo. O fluxo de informações nunca esteve tão acelerado, com diversas redes sociais que demandam um imediatismo absurdo, e conteúdos de segundos que, cada vez mais, reduzem nossa tolerância e paciência. O que é considerado devagar e cansativo, hoje, cada vez se torna mais curto - a "tiktokização" do pensamento já tornou vídeos de 5 minutos ou até mesmo algumas páginas de um livro algo de difícil consumo, taxado de "chato". Nós estamos nos acomodando na automação de tudo, e o resultado disso é uma geração que tem dificuldade até em escrever a própria assinatura. Nesse contexto, uma ferramenta em particular emerge mais que nunca: a inteligência artificial. Em voga especialmente devido à uma controversa trend envolvendo o Studio Ghibli, o debate sobre artes de IA serem arte, a ética acerca de produtos gerados por ferramentas como ChatGPT, aflora. Ainda assim, precisamos olhar para isso com...