Estamos vivendo um período decisivo da história. Com certeza o mundo será outro quando a quarentena acabar, um mundo completamente diferente. No momento, o que podemos fazer é evitar sair de casa e manter os cuidados de sempre - especialmente a higiene das mãos. E para passar o tempo, a arte é uma das maiores aliadas. Aproveitando a ocasião, irei comentar sobre minha série preferida, que recentemente exibiu sua última temporada, com um final mais que perfeito: BoJack Horseman.
BoJack Horseman (2014-2020)
BoJack Horseman acompanha a vida do personagem-título, ator que fez parte de uma sitcom de sucesso dos anos 90, Horsin' Around, e que caiu na decadência. Buscando se reerguer, ele contrata uma escritora-fantasma, Diane Nguyen, para escrever uma biografia sobre sua vida. A série também acompanha Todd Chavez, um jovem preguiçoso que dormiu no sofá de BoJack e nunca mais saiu da casa dele, Princess Carolyn, uma gata persa que é sua ex-namorada e agente, e Mr. Peanutbutter, um labrador amarelo, e namorado de Diane, que insiste em ser amigo de BoJack.
A série é uma das mais populares e bem-sucedidas produções originais da Netflix. Infelizmente ela foi cancelada em 2019, mas, ao contrário de muitas séries canceladas pelo serviço de streaming, foi oferecida a possibilidade de uma temporada conclusiva, que foi dividida em duas partes - a primeira lançada em outubro de 2019 e a segunda em janeiro de 2020. BoJack Horseman é uma sátira a Hollywood e o preço da fama, só que não apenas isso. O grande trunfo da série é o texto, que trabalha perfeitamente questões muito amplas e atuais, desde aborto e assédio sexual a depressão, alcoolismo, relacionamentos (ou o término deles), existencialismo...
São personagens multidimensionais e humanos, mesmo os que não são seres humanos. É quase impossível não se identificar com um - ou vários - deles. Não somente os principais, os coadjuvantes também são muito bem trabalhados e possuem arcos narrativos interessantes. Nada acontece ao acaso. Mesmo sendo o protagonista, a série não gira em torno de BoJack, havendo grande destaque para a história de Diane e sua relação com Mr. Peanutbutter. Mas para falar da construção dos personagens, é preciso entrar em território de spoilers. Irei falar um pouco de cada personagem principal, e por fim falar a respeito do final da série e por que é o melhor final possível.
A série é uma das mais populares e bem-sucedidas produções originais da Netflix. Infelizmente ela foi cancelada em 2019, mas, ao contrário de muitas séries canceladas pelo serviço de streaming, foi oferecida a possibilidade de uma temporada conclusiva, que foi dividida em duas partes - a primeira lançada em outubro de 2019 e a segunda em janeiro de 2020. BoJack Horseman é uma sátira a Hollywood e o preço da fama, só que não apenas isso. O grande trunfo da série é o texto, que trabalha perfeitamente questões muito amplas e atuais, desde aborto e assédio sexual a depressão, alcoolismo, relacionamentos (ou o término deles), existencialismo...
São personagens multidimensionais e humanos, mesmo os que não são seres humanos. É quase impossível não se identificar com um - ou vários - deles. Não somente os principais, os coadjuvantes também são muito bem trabalhados e possuem arcos narrativos interessantes. Nada acontece ao acaso. Mesmo sendo o protagonista, a série não gira em torno de BoJack, havendo grande destaque para a história de Diane e sua relação com Mr. Peanutbutter. Mas para falar da construção dos personagens, é preciso entrar em território de spoilers. Irei falar um pouco de cada personagem principal, e por fim falar a respeito do final da série e por que é o melhor final possível.
(ALERTA SPOILERS)
Por ser o protagonista, BoJack Horseman é o personagem mais explorado na série. BoJack é egocêntrico, naturalmente pessimista e costuma afastar as pessoas que ama por sua toxicidade - ele é uma pesssoa tóxica, mas que, no fundo, tem uma alma boa. Grande parte disso vem de sua infância problemática, com um pai ausente e uma mãe rigorosa que viviam constantemente brigando e o deixando de lado. Por isso (e outros motivos), BoJack desde cedo começou a beber, e teve dificuldade em manter relações saudáveis com as pessoas durante sua vida inteira. Notavelmente com mulheres.
Claro que houve mais tragédias em sua vida - seja direta ou indiretamente causadas por ele. A maior delas com certeza está relacionada com Sarah Lynn, atriz mirim de Horsin' Around a qual via quase como uma filha. Ele foi o principal responsável por fazê-la retomar o vício em drogas e, consequentemente, morrer de overdose em seus braços no planetário (talvez o momento mais impactante da série). Não apenas ela, seu amigo Herb Kazzaz também foi afetado indiretamente por BoJack, quando este teve que o convencer a se demitir pelo simples fato de ser gay. Já fora da série, Kazzaz opta por viver uma vida de filantropia e quase padece devido ao câncer, morrendo em um acidente de carro um tempo depois de se curar.
Meu objetivo não é citar tudo de errado que BoJack fez durante a série, pois iria estender demais a análise, mas foram muitas coisas. Dessa maneira, é fácil enxergá-lo como um personagem mau. Aí que entra a brilhante construção narrativa da série: nenhum personagem é completamente bom ou mau, são personagens humanos, com suas qualidades e defeitos. BoJack sofre extrema pressão pelo fato de ser famoso, assim como quase todos astros de Hollywood (ou deveria dizer, Hollywoo) na vida real. A fama tem um preço. Vemos isso não apenas nas atitudes problemáticas do personagem, mas também em sua depressão e sua dificuldade em manter um relacionamento. Um diálogo na segunda temporada traduz exatamente isso.
BoJack - Você não me conhecia. Então se apaixonou por mim, e agora me conhece.
Wanda - Sabe, é engraçado. Quando você vê alguém através de óculos avermelhados, todas bandeiras vermelhas parecem apenas bandeiras.
Ao longo da série, entretanto, ele consegue manter algumas relações. Diane, por exemplo, é a bússola moral de BoJack. Em decorrência da escrita do livro os dois se aproximam, e ao decorrer da vida ela acaba se tornando melhor amiga dele, e uma das poucas pessoas que realmente o compreende e o ajuda. Diane é a perfeita antítese de BoJack, ao mesmo tempo que é bastante semelhante a ele. O aspecto mais interessante da personagem, na minha opinião, é a maneira que ela lida com sua depressão. Desde o início da série vemos indícios de que ela sofre da doença, mas somente nas temporadas finais, após iniciar um relacionamento com Guy, que ela exterioriza isso. Ela também viveu uma infância complicada e parece encontrar problema em tudo, tendo problemas para ser feliz em seus relacionamentos e seu trabalho.
Princess Carolyn é a representação perfeita de uma workaholic. Seu arco dramático é muito interessante, mostrando sua busca constante por um equilíbrio de rotina e seu sonho de ter um filho - que no final consegue realizar, adotando Ruthie. Todd e Mr. Peanutbutter são o alívio cômico da série, com suas ideias absurdas e aventuras mirabolantes. Com o desenrolar da série, entretanto, vão ganhando peso dramático, especialmente Peanutbutter. Gosto bastante dos arcos dramáticos de Sarah Lynn e Hollyhock, personagens coadjuvantes que se destacam das demais na minha opinião. E há dois personagens que funcionam mais como gags recorrentes mas que são brilhantemente construídos: Vincent Adultman e Henry Fondle. Para além da piada, Vincent representa os jovens adultos que fogem de responsabilidades, que, por trás das aparências, ainda são "três crianças dentro de um casaco". E Henry é uma representação distorcida e estranhamente realista de assediadores como Harvey Weinstein.
A série dosa perfeitamente o tom, fluindo bem entre o humor e o drama. Há situações pesadíssimas envolvendo o passado de BoJack (a pavorosa cena da lobotomia), as consequências às vezes fatais do vício em drogas e até atos de violência como esganamento, que se contrastam com as palhaçadas (literalmente) de Todd e Mr. Peanutbutter, como o Halloween em Janeiro. Em meio a isso, há episódios geniais que se destacam, como o maravilhoso Fish Out of Water, um episódio com quase nenhuma fala que se passa debaixo d'água (talvez o melhor episódio da série), e vários outros: That's Too Much Man!, Ruthie, Free Churro e os dois episódios finais, The View from Halfway Down e Nice While It Lasted.
Quem somos nós e o que estamos fazendo com nossa vida? (Crédito: Divulgação - Netflix)
Meu objetivo não é citar tudo de errado que BoJack fez durante a série, pois iria estender demais a análise, mas foram muitas coisas. Dessa maneira, é fácil enxergá-lo como um personagem mau. Aí que entra a brilhante construção narrativa da série: nenhum personagem é completamente bom ou mau, são personagens humanos, com suas qualidades e defeitos. BoJack sofre extrema pressão pelo fato de ser famoso, assim como quase todos astros de Hollywood (ou deveria dizer, Hollywoo) na vida real. A fama tem um preço. Vemos isso não apenas nas atitudes problemáticas do personagem, mas também em sua depressão e sua dificuldade em manter um relacionamento. Um diálogo na segunda temporada traduz exatamente isso.
BoJack - Você não me conhecia. Então se apaixonou por mim, e agora me conhece.
Wanda - Sabe, é engraçado. Quando você vê alguém através de óculos avermelhados, todas bandeiras vermelhas parecem apenas bandeiras.
Ao longo da série, entretanto, ele consegue manter algumas relações. Diane, por exemplo, é a bússola moral de BoJack. Em decorrência da escrita do livro os dois se aproximam, e ao decorrer da vida ela acaba se tornando melhor amiga dele, e uma das poucas pessoas que realmente o compreende e o ajuda. Diane é a perfeita antítese de BoJack, ao mesmo tempo que é bastante semelhante a ele. O aspecto mais interessante da personagem, na minha opinião, é a maneira que ela lida com sua depressão. Desde o início da série vemos indícios de que ela sofre da doença, mas somente nas temporadas finais, após iniciar um relacionamento com Guy, que ela exterioriza isso. Ela também viveu uma infância complicada e parece encontrar problema em tudo, tendo problemas para ser feliz em seus relacionamentos e seu trabalho.
Momentos no telhado. (Crédito: Divulgação - Netflix)
Princess Carolyn é a representação perfeita de uma workaholic. Seu arco dramático é muito interessante, mostrando sua busca constante por um equilíbrio de rotina e seu sonho de ter um filho - que no final consegue realizar, adotando Ruthie. Todd e Mr. Peanutbutter são o alívio cômico da série, com suas ideias absurdas e aventuras mirabolantes. Com o desenrolar da série, entretanto, vão ganhando peso dramático, especialmente Peanutbutter. Gosto bastante dos arcos dramáticos de Sarah Lynn e Hollyhock, personagens coadjuvantes que se destacam das demais na minha opinião. E há dois personagens que funcionam mais como gags recorrentes mas que são brilhantemente construídos: Vincent Adultman e Henry Fondle. Para além da piada, Vincent representa os jovens adultos que fogem de responsabilidades, que, por trás das aparências, ainda são "três crianças dentro de um casaco". E Henry é uma representação distorcida e estranhamente realista de assediadores como Harvey Weinstein.
A série dosa perfeitamente o tom, fluindo bem entre o humor e o drama. Há situações pesadíssimas envolvendo o passado de BoJack (a pavorosa cena da lobotomia), as consequências às vezes fatais do vício em drogas e até atos de violência como esganamento, que se contrastam com as palhaçadas (literalmente) de Todd e Mr. Peanutbutter, como o Halloween em Janeiro. Em meio a isso, há episódios geniais que se destacam, como o maravilhoso Fish Out of Water, um episódio com quase nenhuma fala que se passa debaixo d'água (talvez o melhor episódio da série), e vários outros: That's Too Much Man!, Ruthie, Free Churro e os dois episódios finais, The View from Halfway Down e Nice While It Lasted.
Todd - Você não pode continuar a fazer isso! Você não pode continuar a fazer merda e então se sentir mal consigo mesmo como se isso fosse fazer que seja algo certo. Você tem que ser melhor! Você é todas coisas que estão erradas. Não é o álcool, ou as drogas, ou qualquer uma das merdas que aconteceram a você durante sua carreira ou quando era uma criança. É você. Certo? É você. Droga, cara, o que mais há a ser dito?
Mas o que me conquistou em BoJack Horseman foram os questionamentos existencialistas. É até estranho pensar que uma animação sobre um cavalo antropomorfo que satiriza Hollywood possa atingir tão fundo a alma do espectador, mas essa é a verdade. Diria que é impossível não se identificar em algum momento com algo na série. Seja os momentos de alegria ou de tristeza, ou algo que algum personagem falou. É uma das coisas mais inteligentes e bem construídas que tive o prazer de assistir em toda a minha vida.
E o final... foi bastante inesperado, surpreendentemente positivo e genial. A série podia muito bem ter acabado no penúltimo episódio, com BoJack morrendo, mas os criadores optaram por um final mais otimista, sem deixar de lado o pessimismo. Porque ao mesmo tempo que as coisas acabaram "bem", a vida continua, e como diz Diane, "às vezes a vida é uma merda e continuamos a viver". O foco da série nunca foi BoJack. Talvez seja a última vez que os dois vão se falar. Talvez seja a última vez que vamos conviver com esses personagens. Mas é uma noite bonita, não?
E o final... foi bastante inesperado, surpreendentemente positivo e genial. A série podia muito bem ter acabado no penúltimo episódio, com BoJack morrendo, mas os criadores optaram por um final mais otimista, sem deixar de lado o pessimismo. Porque ao mesmo tempo que as coisas acabaram "bem", a vida continua, e como diz Diane, "às vezes a vida é uma merda e continuamos a viver". O foco da série nunca foi BoJack. Talvez seja a última vez que os dois vão se falar. Talvez seja a última vez que vamos conviver com esses personagens. Mas é uma noite bonita, não?
NOTA: 10 / 10
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