A Coreia do Sul é um dos grandes polos de cinema da atualidade. Os filmes sul-coreanos têm ganhado destaque especialmente após o fenômeno de Parasita, mas é de muito antes esse crescimento dentro do mercado cinematográfico. São produções originais e densas, cujos maiores expoentes estão nos gêneros suspense e terror. Oldboy é talvez o filme mais conhecido sul-coreano dos últimos tempos, e é um grande filme (um dos meus filmes preferidos), mas hoje irei comentar de outra produção, que não ganhou tanto destaque no meio mainstream mas que é um grande filme: Eu Vi O Diabo, suspense policial de 2010 dirigido por Kim Jee-Wook, que dirigiu também o filme Medo, de 2003.
Eu Vi O Diabo (2010)
Kim Soo-hyeon é um policial que tem a esposa assassinada brutalmente por um psicopata, Kyung-chul - vivido pelo brilhante ator de Oldboy, Choi Min-sik. Desde então, Kim cria uma obsessão por vingança e encontra o assassino, o nocauteando e instalando um chip localizador em seu corpo. Começa um intenso jogo de gato e rato, com Kyung-chul sendo constantemente perseguido e torturado pelo policial em todo lugar que ele vai. Mas Kyung entra no jogo e revida, provando que subestimá-lo foi um grande erro.
(ALERTA SPOILERS)
A afirmação dita por Kyung-chul vale para o próprio Jee-Wook: não o subestime. A trama aparenta seguir em uma narrativa "convencional" de vingança e perseguição policial, mas ao passo que o filme se desenvolve, vai ganhando volume e densidade, e elevando a outro patamar os questionamentos morais dos personagens. Até que ponto a vingança não corrompe um indivíduo? Citando Nietzsche, o quanto podemos contemplar o abismo sem que ele nos contemple de volta? Me remeteu muito à Trilogia da Vingança do Park Chan-wook. Na verdade, Eu Vi O Diabo poderia muito bem ser um quarto capítulo não oficial do projeto de Park, dadas as semelhanças temáticas e a presença de Choi Min-sik. Pude perceber também influências de Se7en e Ichi The Killer, e me remeteu também ao posterior A Casa Que Jack Construiu, do Lars Von Trier.
É um filme cuja direção e roteiro são impecáveis, mas que encontra seu ponto forte na atuação de Choi, que mais uma vez se mostra um dos melhores atores da sua geração. Adoro o trabalho dele em Oldboy, e aqui ele entrega uma atuação assustadora de um psicopata. Kyung-chul é um retrato dos mais monstruosos de serial killers que já vi no cinema. Lee Byung-hun também merece destaque. Seu trabalho como Kim Soo-hyeon é espetacular. É um personagem reservado que carrega uma imensa dor e raiva interna, que acaba contida, e Lee transmite perfeitamente isso através dos gestos, olhar e tom de voz. A cena final, em que desaba após finalmente se vingar, é impressionante.
Momentos angustiantes dignos de um filme de Takashi Miike. (Crédito: Divulgação - Peppermint & Company)
A longa duração funciona, apesar de que em alguns momentos Jee-Wook se estenda demais. O ritmo geral, no entanto, é dinâmico, e consegue prender o espectador através de sua tensão crescente. A violência é outro elemento importante para o storytelling; acho que em nenhum momento se torna algo gratuito. O diretor parece ter domínio pleno de até onde pretende ir em cada cena. São situações violentas e perturbadoras, mas em pouquíssimos momentos vemos a ação em si acontecendo. Há uma preferência ao não-dito, a qual é reforçada na montagem: os momentos crus sempre são induzidos pelos cortes, sons ou são interrompidos por outro personagem ou situação. É notável particularmente quando Kim está prestes a fazer algo que vá tirar a vida de alguém e congela, com medo de cruzar seus princípios morais em prol da sua vingança - o que acaba fazendo nos minutos finais, quando os atos violentos, maiores ou menores, são mostrados em tela.
A trilha sonora não tem muito destaque, mas nos momentos que tem ajuda a construir a atmosfera sombria e reflexiva da narrativa. Não é, entretanto, uma trilha que funcione como produto isolado, tais quais as de Betty Blue, Cinema Paradiso e do próprio Oldboy.
Oh Dae-su está de volta, e não está para brincadeira. (Crédito: Divulgação - Peppermint & Company)
Eu Vi O Diabo é uma produção densa, impactante e reflexiva. Novamente, mais uma indicação para estômagos fortes, e um prato cheio para adoradores de cinema extremo de qualidade.
NOTA: 8 / 10
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