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Musicais #2 - Miss Saigon

Miss Saigon é uma peça de 1989, com libreto de Alain Boublil e Claude-Michel Schönberg. Os dois são mais conhecidos por terem criado Os Miseráveis (ou Les Mis), um dos maiores - e melhores - musicais de todos os tempos. Miss Saigon é o segundo trabalho mais conhecido deles, e estreou na Broadway em 1991. Houve muitas polêmicas em torno da peça, especialmente relativas ao elenco e o trabalho de maquiagem - Jonathan Pryce, que faz o Engenheiro no elenco original, não é asiático, assim como mais da metade dos personagens asiáticos, e para "simular" traços asiáticos foram utilizadas próteses nos olhos e maquiagem para alterar a cor da pele. Isso foi corrigido nos últimos revivals, onde o elenco asiático é composto por atores e atrizes asiáticas; mas não estou aqui para falar sobre isso. Vim falar um pouco sobre Boublil e Schönberg e essas duas grandes obras do teatro musical, e também comentar também sobre a gravação de 2016 de Miss Saigon.

You will not touch him! (Crédito: Divulgação)

(ALERTA SPOILERS)

Nesses três anos que venho consumindo musicais, encontrei apenas duas peças que considero serem "complicadas" de assistir/ouvir - In Trousers e Miss Saigon. Mas em outro momento falo sobre William Finn e seu Falsettos. Tendo visto e ouvido Les Mis tantas vezes (tanto a peça quanto o filme), não pude deixar de perceber semelhanças de composição entre as duas peças. O número inicial de Miss Saigon parece uma mistura de At The End of the Day e Lovely Ladies, assim como The Movie In My Mind tem um quê de I Dreamed a Dream, e o número de encerramento, Little God Of My Heart, lembra muito A Little Fall of Rain (especialmente em nível de posicionamento dos atores). Ambas peças possuem uma música chamada The Confrontation, mas a canção que dialoga mais com o confronto Valjean-Javert é You Will Not Touch Him, onde a voz de Kim (uma espécie de Jean Valjean feminina) se cruza com a de Thuy (que possui ares de um Javert, em seus trejeitos e tom de voz). Aliás, diga-se de passagem, esse é um dos momentos mais potentes e impactantes do teatro/cinema musical. O Engenheiro é uma versão mais esperta do senhor Thénardier (sua saída em Coo-Coo Princess remete bastante à saída do Thénardier em The Robbery); a Kim em vários momentos lembra também a Eponine e a Fantine. Os números românticos dela e de Chris remetem muito aos de Cosette e Marius.

Quer dizer que Miss Saigon é uma cópia de Les Mis? Nem de longe. Assisti recentemente ao filme de 2016, ou melhor, a gravação oficial da performance de 25 anos, e fiquei refletindo por um bom tempo. É inegável o impacto emocional da peça, e já adianto que Les Mis ainda é meu musical preferido, mas acho o libreto de Miss Saigon melhor que o de Les Mis. Eis meus motivos.

Na minha opinião, a força motriz de Miss Saigon é a camada política. Superficialmente aparenta ser "apenas" um romance épico e trágico com um desfecho triste, e com uma visão levemente estereotipada dos asiáticos. Mas o contexto é a chave para entender os acontecimentos da peça. Miss Saigon é uma visão externa à guerra do Vietnã, que denuncia o comportamento de ambos os lados. Algumas pessoas comentaram a respeito da glorificação norte-americana através da figura de Chris; vejo como o contrário. Chris é um personagem muito interessante na verdade, e representa, ao meu ver, uma caricatura dos americanos durante e após a guerra. Seu sonho recorrente com Kim pode muito bem representar a inconformidade dos EUA com a derrota, que então se transforma em uma culpa pelos erros cometidos. Isso fica bem claro no final, quando ele e sua nova esposa, norte-americana, levam a filha de Kim consigo - seria uma representação visual de uma "vitória"? Ou então, mais provavelmente, o desejo de reparação?

Outro aspecto importante (evidentemente) é a score. A música mais importante para compreender a motivação dos personagens é The American Dream. Desde o começo, o "sonho americano" faz a narrativa andar - desde Dreamland até o clube de striptease. Os personagens depositam sua esperança nisso, ou vão radicalmente contra. Fica claro nas ações e falas do Engenheiro sua intenção de ir para os EUA e viver o "sonho americano", mas isso é uma motivação presente também em Kim. Para além da camada do romance, o filho dos dois, Tam, pode representar essa esperança de uma vida melhor através do "sonho americano".  Uma confiança quase que cega, quando Chris decide basicamente abandoná-la e levar somente o filho deles. Novamente, ele vira as costas para o passado e decide também viver o "sonho americano" à sua maneira. Não tendo mais essa esperança, a única saída para ela é a morte. Ela se torna a maior vítima do "sonho americano" - destaque para a atuação de Eva Noblezada, uma das performances mais genuínas e emocionantes que já vi na minha vida. 

Mas a chave para compreender a dualidade política de Miss Saigon está no personagem do Engenheiro. Como a canção The American Dream expõe:

Está surpreso que enlouquecemos
Com dólares caindo como chuva?
Homens de negócio nunca roubam bancos
Você pode vender m*rda e é agradecido
É o que eu aprendi com os ianques
(...)
O que eu sinto no ar
O sonho americano
Doce como um novo milionário
O sonho americano
Pré-embalado, pronto para vestir
O sonho americano
Gordo como uma bomba de chocolate
Enquanto você chupa o creme

O Engenheiro entendeu que o "sonho americano" é uma ilusão, e se aproveita disso para lucrar. Mais adiante na música ele cita inclusive Fred Astaire, um dos ícones dos filmes musicais dos anos 30, que representa muito bem essa visão de mundo. Como visto em vários momentos da história, ele joga em ambos os lados, e se utiliza de tudo e de todos - incluindo Kim e Tam - para atingir seu objetivo. Assim como o Comediante em Watchmen, ele entendeu como funciona o jogo, e para sobreviver, resolveu virar uma sátira dessa realidade.

Mas não é apenas os EUA que são criticados. A URSS também é criticada, especialmente no Ato I, representada por Thuy. Na verdade, acredito que muitos acontecimentos são pelo ponto de vista de Kim, e em sua narrativa, Thuy é o inimigo. Para muitos a abordagem optada pelo roteiro é a favor dos EUA, mas apesar de a crítica mais explícita ser contra a URSS, ao meu ver, isso é algo bastante equilibrado. A utilização de estereótipos evidencia uma visão satírica que - na minha opinião, posso estar errado - denuncia uma visão errônea que os americanos, e o mundo, têm dos asiáticos. Acredito ter sido feito de propósito, de maneira que Kim e Chris são os "erros da Matrix" (obrigado pela referência, Dark), especialmente Kim. Sendo assim, é um roteiro de muitas camadas.

Já comentei o quanto gosto da atuação de Eva Noblezada, mas acho importante falar mais sobre a personagem Kim. A protagonista da peça, e talvez um dos papéis mais difíceis do teatro musical (tanto em canto quanto em atuação), é ela que é responsável pela camada emocional da história em grande parte do tempo. Ela carrega o maior fardo entre todos personagens, assim como tem a história de vida mais trágica. Sua motivação vai muito além de um romance com um soldado estadunidense. Kim é o pingo de esperança genuína; sua energia vem de si mesma, e é com esta energia que protege suas esperanças, sonhos e desejos. Todos são vítimas da guerra, só que ela é a única que persiste por seus próprios ideais, e sua "inocência" é uma maneira de escapar de mais dor e perdas. Mas a vida pode ser muito impiedosa às vezes.

Do you hear the people sing? (Crédito: Divulgação - Cameron Mackintosh Ltd.)

Mas vamos falar de Les Mis um pouco. Ainda o maior clássico de Boublil e Schönberg, é inegável o impacto que essa peça teve em sua estreia, e é fácil de entender por que é um dos maiores musicais de todos os tempos - na minha opinião, só "perde" para O Fantasma da Ópera. Também é uma peça bastante política e repleta de camadas, mas a maneira que o libreto foi concebido (assim como a score) é de mais fácil acesso a quem está iniciando sua jornada nesse universo. Isso a torna mais popular. O fato de haver um filme também ajuda; o longa de Tom Hooper de 2012 é uma ótima porta de entrada para a peça e até para o mundo dos musicais - foi assim para mim.

Sintetizando meus argumentos, não acho que comparar as duas peças seja o melhor, mas fazer paralelos é inevitável. Enquanto o libreto de Miss Saigon é mais "forte" e reflexivo que o de Les Mis, as melodias e arranjos de Les Mis são mais marcantes que as de Miss Saigon. Os dois se completam. Gosto de enxergar os dois como Não Amarás e Não Matarás, ambos parte do Decálogo, do diretor polonês Krzysztof Kieslowski. Les Mis, para mim, tomou mais o caminho emocional, e sua crítica social e política é permeada de uma poesia que "suaviza" de certa maneira a experiência nos minutos finais - assim como Não Amarás. Miss Saigon, por outro lado, também emociona bastante e é igualmente poético, mas toma um caminho mais "seco" e racional, especialmente no Ato II - como Não Matarás. O mais importante de tudo é: são duas grandes obras, que mexem com o espectador de maneira única.

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