Antes de começar, umas palavras.
Os últimos meses foram bem difíceis para todos. Vai demorar muito tempo até nos reerguemos novamente; os impactos da pandemia foram, e estão sendo, imensos, em todas esferas da sociedade. Não vou nem mencionar o número de mortos, vidas preciosas que se foram para sempre... 2020 têm sido um ano bastante difícil em nível pessoal para mim, e nessas horas recorro aos meus amigos e à arte para vencer os problemas. Tenho muitos planos para o CineAlternativo, vários filmes que penso em comentar - esperem por mais filmes nacionais, orientais, séries e uma reestruturação do bloco de musicais. Novidades pela frente. Além disso, estou tentando manter uma periodicidade - sempre levei o blog de maneira mais "descompromissada", agora tento divulgar críticas e análises novas segundas e quintas-feiras.
Dito isso, um breve parágrafo introdutório sobre o filme que vou comentar hoje. Esse filme é um filme muito especial para mim e que, junto de Betty Blue e Cinema Paradiso, fecha a minha trindade do cinema europeu. O primeiro capítulo da Trilogia das Cores do diretor Krzysztof Kieslowski, e sua obra-prima na minha opinião:
A Liberdade É Azul (1993)
A Trilogia das Cores se baseia no lema da Revolução Francesa e na bandeira da França para contar três histórias independentes, trazendo a realidade política e social da França moderna (nos anos 90 no caso, quando os filmes foram lançados). A trilogia começa com A Liberdade É Azul, que acompanha a vida de Julie Vignon, esposa do compositor Patrice de Courcy, com quem tem uma filha. Eles sofrem um acidente de carro, no qual apenas Julie sobrevive. Além de sofrer o impacto emocional das perdas, ela sofre pressão por parte da comunidade europeia, pois Patrice estava compondo um hino de unificação da Europa antes de morrer. Ela então contata Olivier Benôit, antigo parceiro de composição de Patrice, e os dois se envolvem. Só que Julie começa a observar a vida e as pessoas ao seu redor e se dá conta de que precisa mudar.
Alerta: Spoilers leves (ou não tanto) adiante. Nada que estrague a experiência, mas fica o aviso.
É difícil resumir A Liberdade É Azul. É uma história que, muito além de um romance ou de uma história de superação, aborda temas super densos e reflexivos, primordialmente a ideia de "liberdade". Mostra a fragilidade de nossos laços e o quanto não conhecemos as pessoas e a nós mesmos. Há também uma ideia de emancipação, com Julie se permitindo dar voz em uma sociedade onde o homem é mais privilegiado. Um exemplo disso é como, para o mundo, ela vive sob a sombra do marido e mesmo de Olivier, até decidir finalizar o hino e assinar com seu próprio nome. Só aí ela se permite a chorar pela morte da família.
Há também, evidentemente, um contexto político muito forte, representado pelo hino de unificação da Europa. E é uma abordagem muito interessante, pois está intrinsecamente ligada à música como um todo - elemento fundamental para compreender a história, a motivação dos personagens e o que estão sentindo. Aliás, um dos pontos mais altos do filme é a trilha sonora, composta pelo genial Zbigniew Preisner, parceiro recorrente de Kieslowski. Acho incrível como a música, mesmo sendo instrumental, se porta quase como se fosse um musical no quesito estrutura. A música é quase como um personagem, onipresente, que rege os acontecimentos.
Um filme de muitas camadas. (Crédito: Divulgação - MK2 Productions / CED Productions / CAB Produtions / France 3 Cinéma / TOR Studio Productions / Canal +)
Outro aspecto que me saltou os olhos logo no primeiro plano é a direção de fotografia. Não me recordava o quão incrível era. O tom azulado permeia o filme, assim como tons de verde - trabalho incrível do setor de iluminação, talvez uma das minhas iluminações preferidas, junto a Audition. E a mise-en-scène é perfeita, hipnotizante. Não apenas como cinéfilo, falo como estudante de cinema: é uma das melhores mise-en-scènes que já vi na vida. As escolhas de decupagem são perfeitas também, com destaque para um plano específico, um plano detalhe do olho de Julie, que facilmente entraria numa lista de planos mais bonitos da história do cinema (na minha opinião).
Vale destacar também as atuações, especialmente a de Juliette Binoche. Um dos melhores papéis de sua carreira, ela acerta em cada gesto, expressão facial, olhar... uma atuação completa e rica em detalhes, e que mesmo com a "frieza" da personagem (que, pensando agora, dialoga com a cor azul) é extremamente intensa e comovente.
E tem mais. "Além" de ser um filme com muito conteúdo e um subtexto denso e reflexivo, não perde a capacidade sensorial, do cinema como experiência. Vários filmes "intelectuais" buscam trazer um roteiro intrincado e que visa fazer o espectador quebrar a cabeça pensando e processando a história, mas acabam se tornando "analíticos" demais (no bom sentido). A Liberdade É Azul é extremamente poético, até os detalhes. Um exemplo interessante é um plano perto do final, em que Julie observa a partitura finalizada do hino e se levanta para ir se encontrar com Olivier. O tom da imagem é levemente esverdeado, e quando ela se levanta, um objeto azul de seu teto cobre grande parte da tela. É uma representação muito impactante e sensorial e, de novo, um uso perfeito da composição e da paleta de cores para trazer simbolismos à narrativa.
Um filme essencial, tanto para quem é cinéfilo quanto para quem quer seguir no mercado cinematográfico.
Nota: 10 / 10
Interessante os aspectos que você destacou. Fiquei com vontade de rever o filme para observá-los. Parabéns!
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