Há algo mágico no audiovisual. Enquanto o teatro registra o momentâneo - não importa se é a mesma peça, o mesmo elenco, o mesmo figurino, cada performance será única - a imagem congela o tempo. Ao assistirmos a um filme, aquele filme nunca vai mudar. Ao tirarmos uma foto, aquela foto nunca vai mudar. Isto por si só já influencia a experiência de consumir a arte e nossa relação com ela. E indo além da arte, quem nunca tirou uma foto de um momento especial e a revisitou em momentos futuros? Aquele sentimento de nostalgia e carinho, de que, não importa o que tenha acontecido depois, aquele momento está congelado em sua frente, seja na sua rede social, em mídia virtual ou física.
(Crédito: Divulgação - Gaumont)
Betty Blue é um filme francês de 1986, um filme cult que marcou sua geração. O enredo é simples: Zorg e Betty são um casal jovem na casa dos 30 anos que vivem sua juventude. A história acompanha o período em que estiveram juntos, começando após uma semana de terem se conhecido e seguindo os áureos anos juntos aos amigos Lisa e Eddy, os altos e baixos. É um amor intenso, marcado especialmente pela personalidade forte de Betty, que é responsável por inúmeros episódios inusitados e conturbados da relação dos dois. É uma obra um tanto quanto datada, que representa bem o cinema francês da década de 80, com bastante erotismo e pessoas fumando, e mais outras situações que o tornam um filme realmente datado. O maior destaque, além da atuação de Béatrice Dalle (facilmente o papel mais icônico de sua carreira), é a trilha sonora de Gabriel Yared, uma trilha linda e preciosa que vive para além do filme em si.
Falando por mim, marcou minha vida, no mínimo minha infância. Me recordo de crescer ouvindo à trilha sonora desse filme e, com o passar do tempo, ter assistido ao filme - duas vezes. Ainda assim, a trilha é a que mais ficou na minha cabeça, e por muito tempo, Betty Blue moldou inclusive fantasias pessoais minhas: por muitos e muitos anos, desde criança, uma grande fantasia minha era assistir a esse filme com alguém tomando um vinho de madrugada no inverno. Então reassistir a essa obra em particular foi uma experiência... interessante.
Não consegui companhia, mas garanti meu vinho e meu cigarro, pelo charme. E dei play. Era a versão do diretor, que, sendo sincera, acho que flui muito bem e possivelmente é melhor que a comercial. Ainda que simples, a história flui bem e é fácil de acompanhar. Mas não foi isso que mais chamou minha atenção. Não foi nem a experiência de ouvir novamente no contexto a trilha do Gabriel Yared. E sim notar como o tempo passa. Aqueles detalhes na narrativa que estavam enterrados no meu passado, e foram se desenrolando feito um novelo. Meus sonhos de infância, aquele tão tenro cheiro e textura do passado, quando tudo era mais simples. Os momentos de alegria que vivi com meus amigos, representados em tela pela relação de Betty e Zorg com Lisa e Eddy. Os momentos de tristeza e perdas. Ao acompanhar uma história de vida alheia, houve um sentimento forte de se reconectar com a própria história de vida.
Provavelmente essa é uma das análises mais diferentes que já fiz, já que sinto que não tenho muito a dizer do filme em si. Betty Blue é como uma fotografia, congelada no tempo, que pode ser revisitada e sempre trará aquele sentimento de saudades e carinho do passado, com o charme sonoro de Gabriel Yared - destacando de novo pois, se não conseguirem assistir ao filme, ao menos escutem a trilha, é uma pérola que dificilmente seria composta hoje em dia. Na verdade, um filme como Betty Blue, com seus acertos e erros, não seria feito hoje em dia. É uma sensibilidade que, não que não haja nos tempos atuais, mas há muito menos. Um tempo para sentirmos as coisas. Mas isso é papo para outro momento.
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