A primeira coisa que fiz, antes de começar a escrever, foi demarcar os primeiros dois parágrafos e inserir a imagem. Particularmente sobre este filme em questão, a imagem é algo essencial. Não aqueles frames gores, de tortura ou de perseguição psicológica, mas a simples (ou deveria dizer complexa) imagem do vazio existencial, que permeia a história inteira. Dito isso, comecemos.
(ALERTA DE GATILHO PARA PESSOAS SENSÍVEIS - E SPOILERS!)
Martyrs há anos é um dos meus filmes de vida, e revisitá-lo não foi tarefa fácil, mas me dei conta que, quanto mais adultos nós somos, mais ele mostra suas reais camadas. Falar muito sobre a sinopse iria estragar a experiência de assistir, mesmo a primeira metade. Ainda que mais simples tematicamente, o primeiro ato, a vingança de Lucy, já traz indícios do conflito real vs virtual. Toca em assuntos como saúde mental, depressão, suicídio, trauma e nos introduz a um "monstro" que persegue a garota durante a primeira hora. Essa "criatura", que à primeira vista é mais um elemento de choque tradicional do terror, é uma pessoa. Uma mulher aparentemente sádica e de aparência assustadora que persegue Lucy a todo momento - ao menos em sua cabeça. Fica evidente que aquela figura não é real, mas é interessante como o filme, mesmo assim, nos deixa com uma pulga atrás da orelha. Afinal, o demônio que corta e machuca é coisa da cabeça ou realmente está lá?
Mas nem de longe Martyrs é um filme de vingança. Ou melhor, TAMBÉM é um filme de vingança. Sendo parte do movimento New French Extremity, espera-se de antemão grande violência em sua primeira camada, então somos brindados com uma intensa cena inicial de chacina familiar. O choque está ali, e possivelmente, também são imagens feitas para chocar. Mas a real extensão do que Pascal Laughier quer transmitir se constrói gradualmente, na frente do espectador. Dessa maneira, Martyrs começa, como costumo dizer, como um thriller psicológico bastante violento. As coisas decolam após o suicídio de Lucy, no qual Anna, a protagonista da história, descobre a verdade da pior maneira possível. Antes da polêmica e chocante montagem de tortura do terceiro ato, ela se encontra com a pessoa por trás do monstro - a mulher enjaulada e castigada no porão.
Mesmo que breve, é uma relação interessante. Conceitos como cativeiro, privação e um próprio esboço de "martírio" já estão ali. A essa altura já está evidente o tom desesperançoso do filme. Todos ali possuem uma vida ruim, mesmo Anna, mesmo os burgueses que financiam o culto. E isso é o primeiro aspecto que se observa ao se reassistir: a perturbação aqui vai muito além do gráfico, do gore, é puramente psicológica. As tristezas, as torturas... psicológicas. A dor inerente ao ser humano. Além de, evidentemente, o aspecto físico. Mas não demora muito para a tentativa de Anna de salvar a prisioneira ir por água abaixo, quando somos introduzidos ao real tema do filme: o vazio da existência. A imagem se esvai, e chegamos ao fundo do porão junto de Anna.
Provavelmente a figura mais enigmática de Martyrs é Madeimoselle. Vale destacar, inclusive, que até então o texto esteve em segundo plano, dando destaque para a tensão visual e rítmica (acentuada pela trilha sonora com pegada de filme de terror). Martyrs é um filme de terror. Terror existencial. E com Madeimoselle temos o diálogo que traduz todo o filme: o conceito de martírio. Conhecemos o culto, composto por pessoas ricas e psicopatas que financiam uma iniciativa insana de busca pelo que há após a morte. Para atingir tal estado, na lógica daquelas pessoas, é necessário passar por dores inigualáveis e quase morrer, para assim atingir um estado de "martírio", no qual supostamente nós seres humanos conseguiríamos ver o que há após esta vida, e assim comunicar aos outros. De maneira nenhuma a "metodologia" desse culto é certa, mas há uma certa ironia no modo que estes tratam as vítimas, tão cruelmente durante o processo e, após atingir o estado em questão, "prezando" o respeito à pessoa torturada.
Mas a essa altura já fomos apresentados ao monstro, inicialmente na cabeça, em seguida real mas externo, e agora com Anna, o monstro interno. Martyrs é um filme de interpretação bem aberta, mas uma muito forte é de crítica ao cristianismo. Há várias simbologias a isso. O monstro cristão por assim dizer. O filme é carregado de uma analogia à dita culpa cristã, que permeia o próprio conceito de ser mártir - é preciso sofrer absurdamente em vida para assim merecer o acesso ao "Paraíso". Temos a fortíssima imagem de Anna, após as inúmeras torturas, sem pele e presa em um pedestal em uma pose semelhante à Jesus Cristo. E isso vem, também, da própria New French Extremity, conhecida por filmes desesperançosos e um tanto quanto niilistas, geralmente tocando na temática religião com certo desdém.
E a existência não é vazia?
A imagem pesa. A imagem da família feliz, que come seu café da manhã tranquilamente como se não escondesse nada. A vida é insignificante e sofrida e, ao se reconhecer e viver isto, aquela imagem de família feliz se enche de sangue e dor. A vida não é bonita assim. Essa situação me remete inclusive à Matrix (comparações improváveis mas nem tanto), a cena em que Cypher janta com o Agente Smith e eles conversam sobre viver na ignorância. O gosto da carne é falso, é virtual, mas não é bom viver dentro da Matrix? De certa maneira, há uma "Matrix" em Martyrs que é quebrada através de violência brutal e sofrimento, visando atingir um Paraíso cristão idealizado.
Pouco se sabe sobre Madeimoselle, além de ela gerenciar o culto, ser sádica e ser a principal pessoa que quer saber o que há após a morte. Lucy, em seu arco, toca em temas importantes já citados, vide saúde mental e suicídio. Anna aqui representa o ser humano. Talvez a vida seja uma merda e nós inevitavelmente vivamos com o preceito de que precisamos sofrer para merecer a paz, mas... nós não sabemos o que ela viu. O que ela disse no ouvido de Madeimoselle. Nós sabemos as consequências. Madeimoselle, esta figura misteriosa e imponente responsável por diversas atrocidades, capaz de tudo para desvendar esse enigma fundamental do ser humano, guarda para si a resposta. Literalmente, tirando a própria vida. Fique imaginando.
A interpretação mais evidente deste final é a de que a resposta para tal pergunta é tão grande que nós não somos capazes nem de processar, mas talvez esteja dentro de todos nós. Mas Pascal Laughier nos deixa com aquela pulga na orelha; é inevitável ficarmos curiosos para saber o que Anna disse. É o que merecemos. Não só Anna, mas os espectadores também viram mártires junto, passam por momentos extremamente desconfortáveis, para, também, merecer o acesso ao Paraíso. A paz. Se é que existe. Afinal, se de acordo com o filme a vida é uma sequência de sofrimentos, nós não merecemos a resposta? E se nós tivermos esta resposta já, e ela for... positiva?
Eu sou ateia, então minha perspectiva acerca de Martyrs é sobre a ótica de uma pessoa ateia, bastante interessada em temáticas de religião, vida após a morte e mortalidade. Sempre foi o assunto que mais me despertou interesse, como debate mesmo. Entender como cada pessoa, independente de sua crença, lida com isso e vive sua vida, sendo que a única certeza da vida é a de que nós vamos morrer em algum momento. Seja o que isso significar. Sendo assim, quem garante que Anna não disse apenas que... existe um Deus e nós não precisamos sofrer para sermos felizes? E se a tão esperada resposta for mais perguntas?
De qualquer maneira, Pascal Laughier não nos responde diretamente, e isso é o mais bonito. Por trás de tanta violência, tortura e pessimismo, talvez Martyrs seja um filme muito bonito. Uma coisa é certa: é muito mais do que um "torture porn intelectual", como costumava pensar. De acordo com o próprio conceito final, somos testemunhas. É isso que sabemos. E uma interpretação particular minha reassistindo é a de que, talvez, as imagens de infância que rodam nos créditos finais sejam a última lembrança de Anna antes de morrer, seguindo aquela ideia de que assistimos a um filme da nossa vida diante dos nossos olhos antes de fazer a partida. E se essa for a resposta, o que Anna viu no estado de martírio? Talvez não haja nada após aqui e o que nos resta são os fiapos de nossas memórias, até desaparecermos da existência e nosso corpo virar mais um pedaço de carne nessa imensa bola amassada que é a Terra. E se for isso, é algo bem desesperador, capaz de fazer até mesmo alguém como Madeimoselle questionar seu propósito.
Nunca saberemos ao certo. Ou saberemos. No fim do dia, o que fica é que quem dá o sentido para nossa existência somos nós mesmos, sofrendo ou não durante o processo.
Brevemente tocando em aspectos técnicos, a maquiagem desse filme é absurdamente boa, assim como as atuações, em particular de Morjana Alaoui, que vive Anna. A intensidade que ela imprime em cada gesto, cada olhar, somado à maquiagem extremamente realista e desconfortável aos olhos... é um trabalho espetacular que merecia muito mais reconhecimento do que merece. E a trilha sonora, ainda que não seja o maior destaque, se encaixa muito bem no tom, deixando quem assiste ora tenso ora desamparado com a própria existência, em particular a melodia dos créditos iniciais (Orphan's Games) e dos créditos finais (Your Witness).
Aproveitando a ocasião para novamente alfinetar o horroroso remake de Martyrs. Além de totalmente desnecessário, mostra a tendência péssima do cinema estadunidense de olhar somente superficialmente para as obras. A adaptação de 2016 perde toda essa camada tão interessante e intrigante e aposta somente na imagem, na violência gráfica, se tornando um filme vazio de vingança genérico e desnecessariamente violento. Martyrs de 2008 é muito melhor em todos aspectos, inclusive no quesito violência - a violência na obra francesa não tem receio de chocar e não é nada gratuita. A violência na obra estadunidense visa chocar mas fica com receio de ir longe demais e a torna extremamente desnecessária.
Que nem digo sempre, assistam ao original, passem longe desse remake que provavelmente é o pior remake da história dos remakes estadunidenses.
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