Pular para o conteúdo principal

A Voz Suprema do Blues (2020) - A despedida de Chadwick Boseman


São 00:30 e acabei de assistir ao último filme de Chadwick Boseman, A Voz Suprema do Blues (disponível na Netflix). Fazia muito tempo que não chorava tanto.

A Voz Suprema do Blues conta um fragmento real da vida da cantora Ma Rainey, quando ela e sua banda gravaram algumas canções em estúdio, entre elas a que dá título ao filme (em inglês), Ma Rainey's Black Bottom. A gravação foi conturbada por diversos motivos, entre eles o atrito entre a cantora e o trompetista Levee, que queria maior liberdade criativa. Falar mais iria estragar a surpresa, mas o final está longe de ser feliz. Baseado em uma peça de August Wilson (o mesmo autor de Fences, cuja adaptação também conta com Viola Davis), o filme acerta na transposição de linguagem, e isso se reflete especialmente na direção de fotografia. A câmera transita entre os personagens de maneira bastante fluida, como se estivesse no palco - há momentos, como os monólogos de Levee, que contam com planos estáticos (e geralmente próximos) que fortalecem muito o sentimento do personagem. A edição sem muitos cortes auxilia na imersão, e é um dos melhores exemplos da edição como um aspecto "invisível" do filme.

O ponto forte, no entanto, são as atuações. Mais especificamente os protagonistas, Viola Davis e Chadwick Boseman. Viola é uma das atrizes mais talentosas e importantes das últimas décadas, e sua Ma Rainey é imponente, crítica e poderosa. É uma atuação precisa, na qual cada gesto, cada olhar, diz muito sobre o que ela sente e o que quer comunicar. A indicação ao Oscar é quase certa. Mas quem rouba a cena é Chadwick Boseman, mais conhecido por interpretar o Pantera Negra, que faleceu de câncer no cólon esse ano. Seu papel mais reconhecido sempre será o do super-herói da Marvel, mas em A Voz Suprema do Blues ele traz sua melhor atuação - que acabou sendo sua última.


Um dos maiores artistas dos últimos tempos. (Crédito: Divulgação - Netflix)


Facilmente uma das melhores, senão a melhor, interpretação do ano, Chadwick mostra todo seu talento dramático; Levee serve como contraponto de Ma Rainey, e é um personagem cheio de personalidade, bastante impulsivo, carismático e persuasivo. Sedutor, em todos sentidos. Quando ele bate de frente com a cantora ao defender suas ideias, sentimos o peso da atuação dos dois - a química entre eles está perfeita; mesmo quando os dois não estão juntos em cena há uma tensão no ar. Sua indicação é certa, e Boseman tem muitas chances de uma vitória póstuma pelo papel.

O mais impactante em A Voz Suprema do Blues, entretanto, não é a relação dos dois, e sim o contexto social. O filme retrata de maneira assustadoramente real o racismo, tanto explicitamente quanto nas entrelinhas. Cada músico lida com esse fator à sua maneira, tornando os personagens, mesmo os coadjuvantes, multifacetados e memoráveis. E o final... um dos desfechos mais perturbadores que já assisti. Não é preciso falas marcantes nem um grande acontecimento, a tomada final por si só fala muito da triste realidade em que vivemos ainda hoje. E isso é o que mais assusta. O impacto fica maior considerando a morte de Chadwick. Um grande artista, um grande ser humano, no auge de sua carreira, que se foi.

A Voz Suprema do Blues é um dos melhores lançamentos de 2020, e certamente irá receber diversas indicações na premiação da Academia. Mas muito além de indicações ao Oscar, é um filme duro, emocionante e (infelizmente) atual. Facilmente um dos melhores filmes da década.

Poucos filmes/séries me fizeram chorar tanto quanto Cinema Paradiso e Your Lie in April. A Voz Suprema do Blues é o novo integrante dessa seleta lista.


Nota: 10 / 10


Letterboxd:

lucasnoronha99 (https://bit.ly/3dbE2p5)

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Thunderbolts* salvou minha vida

Nunca achei que diria isso, mas obrigada, Marvel Studios. Thunderbolts* (destaque para o asterisco, é essencial), bem resumidamente, traz figuras em segundo plano no grande espectro do MCU se unindo e formando uma equipe improvável, de anti-heróis e vigilantes com um passado conturbado e que, sem exceção, lidam com problemas familiares, pessoais e de saúde mental. Na verdade, é um filme sobre saúde mental, vindo da Marvel Studios. Coisa que nem no cenário mais otimista imaginaria, especialmente vindo após o horror que foi Capitão Falcão vs Harrison Ford Vermelho (desculpa, Sam Wilson, torço que você tenha um arco de redenção no futuro com filmes melhores). Dessa maneira, eu, muito mais alinhada ao DCU do James Gunn ultimamente, e cética com o trabalho da Disney com esse multiverso compartilhado, decido assistir à nova produção capitalista da Marvel Studios. E quem diria... mudou minha vida? Crédito: Divulgação - The Walt Disney Company (Alerta de spoilers) Entremos no filme. Como retra...

Reals?

Quantas vezes você acessa o Instagram em um dia? Como se sente postando e rolando os infinitos stories? E quando seu post não recebe a quantidade de likes que você desejava, como você se sente? Em um dia em que a Wi-Fi cai, como você lida? Se você não consegue postar aquela foto que quer tanto, ou atrasa, qual o sentimento? Qual o real valor do seu reels? Quantas perguntas mais para traduzir o fluxo de informação da Internet hoje em dia? Voltemos um pouco. Há décadas atrás, as gerações agora mais antigas viviam sem computador, celular, redes sociais, IAs, nada das inúmeras facilidades que a Internet nos proporciona hoje em dia. A comunicação, assim como muitos aspectos da sociedade, evoluiu muito com o passar do tempo. Não necessitamos mais (necessariamente) mandar cartas para nos comunicarmos com nossos amigos, temos o WhatsApp e o Instagram. Vinis, fitas VHS e até CDs e DVDs já caíram em desuso. A tecnologia nos proporciona facilidades como os streamings - para que ir no cinema se po...

O Cadáver da Inteligência Artificial (uma entrevista com o ChatGPT)

Nós vivemos em um tempo de avanço de tecnologias e novas maneiras de enxergar o mundo. O fluxo de informações nunca esteve tão acelerado, com diversas redes sociais que demandam um imediatismo absurdo, e conteúdos de segundos que, cada vez mais, reduzem nossa tolerância e paciência. O que é considerado devagar e cansativo, hoje, cada vez se torna mais curto - a "tiktokização" do pensamento já tornou vídeos de 5 minutos ou até mesmo algumas páginas de um livro algo de difícil consumo, taxado de "chato". Nós estamos nos acomodando na automação de tudo, e o resultado disso é uma geração que tem dificuldade até em escrever a própria assinatura. Nesse contexto, uma ferramenta em particular emerge mais que nunca: a inteligência artificial. Em voga especialmente devido à uma controversa trend envolvendo o Studio Ghibli, o debate sobre artes de IA serem arte, a ética acerca de produtos gerados por ferramentas como ChatGPT, aflora. Ainda assim, precisamos olhar para isso com...