O filme de Hamilton estreou finalmente no Disney +. Uma das peças da Broadway mais importantes dos últimos tempos, e provavelmente a obra-prima de Lin-Manuel Miranda, Hamilton pode ser considerado um dos clássicos modernos do teatro musical; mas falo melhor em outro momento sobre isso. Desde 2017 sou fã de musicais, e sendo do meio do cinema, comecei assistindo a filmes musicais, até resolver me adentrar no mundo do teatro musical. E aí foi um caminho sem volta. Com o gênero em alta (além do lançamento de Hamilton, o canal The Shows Must Go On disponibilizou diversas peças no Youtube por tempo limitado, entre elas várias do Andrew Lloyd Webber), resolvi iniciar um novo quadro aqui no blog, que abordará o gênero musical como um todo, transitando entre cinema e teatro. Antes de qualquer coisa, é fundamental falar um pouco sobre o gênero em si. O que constitui um musical? Qual sua estrutura?
Sierra Boggess e Norm Lewis como Christine Daaé e Fantasma da Ópera. (Crédito: Divulgação - The Really Useful Group)
Vamos começar trazendo os conceitos básicos. Musical é a peça/filme que utiliza a música como pilar narrativo. A história, as motivações, os sentimentos dos personagens, tudo é transmitido através da música e da coreografia. Os três elementos chaves de um musical são:
- Letra
- Música
- Dança
Podemos dividi-los em cinco categorias: comédia musical, peça musical, opereta, ópera pop e peça com música. Gosto de enxergar, entretanto, como sendo duas.
- Peça com música não é propriamente um musical. São peças que apresentam esses três elementos, mas não são essenciais para o storytelling. O mesmo vale para o cinema. Trago como exemplo os filmes Os Embalos de Sábado à Noite e Bohemian Rhapsody, que têm a música como elemento importante mas não essencial (narrativamente falando).
- Peça musical é a peça que usa esses três elementos em seu storytelling. Muitos filmes famosos são adaptações de peças, como The Sound of Music, West Side Story, Fiddler on the Roof, Sweeney Todd, Os Miseráveis, Mamma Mia!, Grease, Hair, Hairspray, Cabaret, Chicago, Rocky Horror Picture Show, Caminhos da Floresta, Cats, O Fantasma da Ópera... enquanto outros são filmes originais, a citar: La La Land, O Rei do Show, Rocketman, Across The Universe, Moulin Rouge! (um dos poucos casos em que um filme musical foi adaptado para peça), entre outros. Há também as peças filmadas, gravações oficiais de uma peça de teatro, como Cats (de 1998) e o recém-lançado filme de Hamilton. Gravações não-oficiais feitas por espectadores são chamadas de bootlegs. Há também as óperas rock, que podem ou não ser adaptadas para o teatro/cinema. É o caso de Jesus Christ Superstar (que foi concebido originalmente como um álbum conceitual), Tommy, Pink Floyd The Wall, Bare, entre outros.
Assim como qualquer espetáculo, há um roteiro, que costuma ser chamado de book ou libreto. É importante que o libreto traga uma história fácil de ser acompanhada e apresente personagens verossímeis e passivos de identificação. Em qualquer história isso é algo fundamental, logo os musicais não são uma exceção. É importante também que haja situações que direcionem às músicas, pois a história é contada essencialmente através delas.
Uma peça musical se configura geralmente em dois atos. Há outros formatos, como musicais de um ato só (In Trousers, March of the Falsettos, Falsettoland, Assassins, entre outros), ou até de três atos (Anyone Can Whistle, Peter Pan), mas o teatro musical clássico se estrutura em dois atos:
Ato I
A função principal do Ato I é introduzir a trama, os personagens e os conflitos, que irão gerar tensão dramática. Também introduz os temas musicais principais, ou motivos. Peças musicais costumam ter uma intermissão entre os atos, então é essencial que o final do Ato I prenda o espectador, e mantenha seu interesse na peça.
Ato II
Costuma ser mais curto (há exceções) e apresentar menos informações novas. Traz as resoluções para os conflitos estabelecidos no Ato I, e tende a ter reprises com mais frequência. O final do Ato II é talvez mais importante que o do Ato I, pois é o momento que ficará na memória do espectador, então é importantíssimo que a peça tenha uma conclusão satisfatória.
Cena de Les Miserables (elenco da West End). (Crédito: Michael Le Poer Trench)
Como comentei, essa não é a única estrutura que existe. Outra estrutura bastante aplicada é a de um ato. Um dos exemplos mais conhecidos é Falsettos, uma peça de dois atos que na verdade consiste de dois musicais de um ato unidos (March of the Falsettos e Falsettoland). Com libreto de William Finn e James Lapine, eles fazem parte de uma trilogia de Finn, que inicia com In Trousers, uma peça bastante desconhecida, mas um ótimo exemplo de como subverter a estrutura tradicional. Além de ser um musical de um ato, sua narrativa é toda fragmentada e desordenada, o que à primeira vista dificulta (bastante) a compreensão, mas ao mesmo tempo dá ao espectador a possibilidade de montar a história como desejar.
Mas indo além do libreto, uma boa score é essencial. Score nada mais é do que a trilha sonora, a condução musical que ilustra o libreto. As canções podem ser divididas em dois grupos, de acordo com suas características musicais e de acordo com sua função dramática (presente especialmente na letra).
Dentro das características musicais, temos:
- Opening number é o número de abertura. É fundamental que indique a atmosfera, quem são os protagonistas, quais suas relações, qual o tempo e o espaço, o tema, entre outros. Exemplos: Alexander Hamilton (Hamilton), More Than Survive (Be More Chill), Look Down (Les Miserables). Algumas exceções são Mama Who Bore Me (Spring Awakening) e Anybody Have a Map? (Dear Evan Hansen), que não são números grandiosos, mas apresentam bem o tom da peça;
- Establishing number tem a função de estabelecer conceitos e situações fundamentais para a evolução da história. Exemplos: The Squip Song (Be More Chill), Something Bad is Happening/More Racquetball (Falsettos), A Sentimental Man (Wicked);
- Throwaway song tem como função principal preencher uma lacuna, e distrair o espectador quando há uma troca grande de cenário ou figurino. Exemplos: Magical Lasso (The Phantom of the Opera), Turning (Les Miserables);
- Patter song é um número rápido e focado na letra, geralmente com tom mais cômico. Exemplos: Getting Married Today (Company), All For The Best (Godspell), Putting It Together (Sunday in the Park with George);
- Rhythm song tem foco no ritmo. Exemplos: I Believe (Spring Awakening), Will I (Rent);
- Chorus number costuma ser um número maior, com mais atores no palco, sejam eles personagens ativos ou cantores de coro. Exemplos: Masquerade (The Phantom of the Opera), One Day More (Les Miserables), Wigmaker Sequence (Sweeney Todd);
- Musical scene são músicas que comumente apresentam mais de uma melodia e quase sempre são "interrompidas" por diálogos. Exemplos: God, That's Good! (Sweeney Todd), A Tight-Knit Family/Love is Blind (Falsettos), Sincerely Me (Dear Evan Hansen);
- Underscoring são temas instrumentais que complementam os diálogos. São mais recorrentes em filmes musicais, mas podem acontecer em peças também;
- Musical crossover é uma canção curta, quase sempre cômica, que serve de ligação entre duas outras. Exemplos: Beggars at the Feast (Les Miserables), Piragua (In The Heights);
- Segue pode ser visto como uma evolução de musical crossover, sendo um trecho orquestral que direciona à musica seguinte, quase como uma transição. Exemplo: Redcoat Transition (Hamilton);
- Reprise é quando uma música já apresentada retorna, geralmente mais curta e com a letra um pouco diferente. Exemplos: I'm Not That Girl [Reprise] (Wicked), A Heart Full of Love [Reprise] (Les Miserables), Something Bad is Happening [Reprise] (Falsettos).
Dentro das características dramáticas, temos:
- Ballads, como diz o nome, são baladas, e costumam traduzir sentimentos amorosos, tendo a melodia mais predominante. Exemplos: All I Ask of You (The Phantom of the Opera), On My Own (Les Miserables), Johanna (Sweeney Todd);
- Charm songs têm mesma ênfase na letra e na melodia, e costumam ter um teor mais otimista. Exemplos: Do You Love Me (Fiddler on the Roof), I'll Cover You (Rent), By The Sea (Sweeney Todd);
- Comedy songs são músicas leves, com melodia simples e ênfase na letra. Exemplos: Today 4 U (Rent), Dammit Janet (Rocky Horror Picture Show), The Little Things You Do Together (Company);
- Eleven o'clock songs são números no Ato II que impulsionam o espectador para o final da peça. Exemplos: Empty Chairs at Empty Tables (Les Miserables), You Gotta Die Sometime (Falsettos), The Ladies Who Lunch (Company);
- I am songs costumam aparecer bem no início da peça, e estabelecem aspectos essenciais relativos aos personagens. Exemplos: Waving Through a Window (Dear Evan Hansen), Valjean's Soliloquy (Les Miserables), The Phantom of the Opera (The Phantom of the Opera);
- I want songs são semelhantes ao modelo anterior, mas são relativos à narrativa ou a objetivos dos personagens. Exemplos: The Room Where It Happens (Hamilton), Kiss Me (Sweeney Todd).
Agora falando não mais como estudioso e sim como fã.
Talvez a pergunta mais complicada de responder seja: quais seus musicais preferidos? É uma pergunta em tese fácil de ser respondida, mas assim como fazer uma lista de filmes favoritos, é sempre um desafio, pois é algo muito fluido. Já me propus diversas vezes a montar listas, e a cada vez que fazia ficava diferente. Portanto, fiz um top 10 e resolvi dividir em blocos. São eles:
Cena do filme Os Miseráveis (2012). (Crédito: Divulgação - Universal Pictures)
01) Os Miseráveis
De longe meu musical preferido, é minha única certeza na lista. Assisti inicialmente ao filme, que foi o que me fez entrar de vez nesse mundo dos musicais. Depois de um tempo reassistindo e ouvindo sem parar a trilha sonora (e decorando as músicas), acabei por ouvir e assistir à peça também, e inclusive atuar em uma montagem. Amo imensamente a trilha sonora, a história, e mesmo que depois de um tempo tenha passado a preferir a peça, ainda é um filme muito importante para mim, uma boa adaptação.
Obrigado, Disney (Hamilton, 2020). (Crédito: Divulgação - The Walt Disney Company)
02) Sweeney Todd, O Fantasma da Ópera, Hamilton
Esses três musicais costumam variar de posição na lista, por isso estão agrupados.
Meu compositor preferido é o Stephen Sondheim, e Sweeney Todd é a obra-prima dele na minha opinião. Não é uma peça fácil, e não é todo mundo que conhece (se conhecem só assistiram ao filme do Tim Burton, que também é bom), mas ST traz todas características clássicas do Sonheim - as harmonias e tempos quebrados, melodias intrincadas - e tem um dos melhores plot twists da história ao meu ver.
O Fantasma da Ópera é o maior musical de todos os tempos. É a peça musical em cartaz por mais tempo (durante a pandemia não), e tem o tema mais clássico do teatro musical. Mas a trilha sonora vai além da música título - há clássicos como The Music of the Night, All I Ask of You, Prima Donna, The Point of No Return, Wishing You Were Somehow Here Again... poderia citar várias outras, mas só essas já demonstram a grandeza da peça. E tem talvez o melhor número final da história de teatro musical (na minha opinião).
Após sua estreia na Broadway em 2015, Hamilton conquistou o mundo. É um musical incrivelmente bem escrito e, fazendo uma autorreferência, revolucionário. Antes dele haviam outros musicais a abordarem o estilo rap em sua score, mas Hamilton foi o a primeira peça a trazer essa sonoridade dessa maneira. E com uma temática um tanto quanto improvável, o que torna mais genial ainda. Agora com o lançamento do filme no Disney +, a peça atingiu um novo público.
Let's do the time warp again! (Rocky Horror Picture Show, 1975). (Crédito: Divulgação - 20th Century Studios / The Walt Disney Company)
03) Rent, Rocky Horror Picture Show, Spring Awakening, Company, Love Never Dies
Uma mistura um tanto quanto improvável. E sim, você leu certo, Love Never Dies. Vou explicar.
Meu primeiro contato com Rent foi através do filme de 2005. Na época amei o filme, e então um dia ouvi a peça, e me dei conta de que foi uma péssima adaptação. É uma peça que aborda temáticas pesadas com uma score relativamente leve, o que traz um equilíbrio bem interessante (devo dizer que houve uma inspiração em Falsettos, que comento mais adiante). E o Mark é um dos meus dreamroles (depois do Javert, de Les Mis).
Rocky Horror Picture Show é um dos poucos casos que prefiro o filme à peça. Um grande marco da história do cinema, Rocky Horror não teve uma boa recepção inicial na tela grande, e então foi parar nas sessões da meia noite, onde fez um sucesso gigantesco. Pessoas iam assistir várias e várias vezes, vestidas dos personagens, e interagiam com o filme. E é um filme que tem um lugar muito especial na minha vida pois me ajudou muito no meu processo de descoberta sexual.
Spring Awakening foi uma descoberta recente (esse post data de julho de 2020), e após ouvir a primeira vez o OBC (sigla para Original Broadway Cast) não foi algo que me prendeu. Então li sobre o que se tratava, e... eu amo histórias densas, pesadas e tristes. Então ouvi de novo e finalmente a peça me conquistou, a ponto de assistir um bootleg dela (só assisto bootleg de peças que amo incondicionalmente). Os violinos de abertura são lindos, e apesar do final um pouco corrido, o roteiro é muito bem escrito.
Depois de Sweeney Todd, minha peça preferida do Sondheim é Company. A estrutura dela é muito interessante, pois não há uma história linear - pelo contrário, as músicas funcionam quase como vinhetas. O que as unifica são os personagens, e uma situação envolvendo o protagonista, Robert. É um dos primeiros musicais-conceito, e possivelmente inspirou William Finn no processo de escrita de In Trousers e Falsettos (especialmente In Trousers).
Depois de Sweeney Todd, minha peça preferida do Sondheim é Company. A estrutura dela é muito interessante, pois não há uma história linear - pelo contrário, as músicas funcionam quase como vinhetas. O que as unifica são os personagens, e uma situação envolvendo o protagonista, Robert. É um dos primeiros musicais-conceito, e possivelmente inspirou William Finn no processo de escrita de In Trousers e Falsettos (especialmente In Trousers).
Por que Love Never Dies está nessa lista? Para quem não sabe, Love Never Dies é a "continuação" de O Fantasma da Ópera, que foi muito criticada pelo roteiro incoerente, semelhante a uma fanfic (muitas pessoas disseram isso, não apenas eu). LND desconstrói tudo de bom que FO construiu, e a única coisa boa são as melodias. Mesmo com tudo isso, tem um fator importante que é emoção. Reconheço que é uma peça... duvidosa, e o final sempre me deixa irritado, mas acabei criando um vínculo emocional com LND que não sei explicar. E nem deveria. Então sempre coloco essa peça no meu top 10.
De pai para filho (Falsettos, revival de 2016). (Crédito: Divulgação - PBS)
04) Chicago, Falsettos, Cats, Dear Evan Hansen
Chegando no número 10 sempre encontro um problema - qual peça colocar? Cheguei a um ponto onde, de tantas peças e filmes que consumi dentro do gênero, tenho dificuldade em encerrar a lista. Então achei a melhor solução colocar quatro títulos (!!) em décimo lugar. Essas quatro peças/filmes são as que costumam entrar nessa posição da lista.
Chicago foi um dos primeiros filmes a que assisti, enquanto estava descobrindo o gênero ainda. Não cheguei a ouvir o OBC, mas a adaptação de 2002 para o cinema foi muito marcante. Ganhou o Oscar de Melhor Filme em seu ano, e é genial a maneira que a trilha sonora usa da sonoridade do jazz, dá um ar muito interessante. Sem contar a história, extremamente crítica e atual (mesmo se passando nos anos 20). E tem Cell Block Tango, um dos melhores números musicais de todos os tempos.
Falsettos foi outra peça que descobri recentemente, e não é uma peça que ouço com tanta frequência, mas a história é linda (e triste), e tem uma das letras mais geniais do teatro musical na minha opinião: duvido alguém não chorar ouvindo ou vendo Father to Son pela primeira vez. Além do mais, provavelmente foi uma das peças que o Jonathan Larson se inspirou para escrever Rent - o papel de Whizzer em Falsettoland é muito semelhante com o de Angel em Rent. Recomendo assistir ao revival de 2016.
Cats ficou bastante famoso entre os jovens da nossa geração por causa da polêmica adaptação de 2019. Eu gosto de alguns aspectos do filme, mas... definitivamente, a peça é melhor. É a segunda maior bilheteria na história da Broadway, e um dos musicais-conceito mais importantes. Para entender o que é Cats de verdade, vale a pena assistir à gravação oficial de 1998, que é a melhor versão da peça. Foi um dos primeiros sucessos do Andrew Lloyd Webber, e é um dos maiores musicais de todos os tempos (apesar de não ser considerado um dos melhores dele por algumas pessoas).
E por último, temos Dear Evan Hansen. Se fosse listar os musicais mais influentes da atualidade, com certeza esse entraria na lista, junto de Hamilton (o maior na minha opinião), mas em nível pessoal, é uma peça que me divide. Enquanto a história é incrível, extremamente emocionante (e um tanto quanto triste), a score não me atrai tanto. Mas há três ou quatro músicas que amo imensuravelmente, e que vivo cantando - Waving Through a Window é uma das que mais surgem nas minhas sessões de karaokê.
Bom, depois desse longo post espero que você tenha aprendido um pouco sobre esse gênero tão incrível, ou que tenha ficado curioso para consumir mais peças e filmes musicais. Em breve está no ar a parte 2, fiquem atentos.
REFERÊNCIAS:
http://www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/0710514_2011_cap_4.pdf (acesso em 10/07/2020)
https://www.musicals101.com/book.htm (acesso em 11/07/2020)
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