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Coringa (2019) - A gênese de um personagem

Dentre todos personagens do mundo da nona arte, um dos melhores e mais importantes é o Batman. Tido como muitos como o super-herói definitivo, ele é um personagem cuja influência é gigante, seja nos quadrinhos ou no cinema. Ao falarmos sobre Batman é inevitável falar sobre o Coringa, seu arqui-inimigo - um personagem muito rico, um vilão muito complexo e fascinante.

Em se tratando de cinema, o Coringa teve muitas facetas; já foi vivido por muitos atores, entre eles Cesar Romero, Jack Nicholson e Jared Leto. Mas de longe o mais icônico foi o Coringa de Heath Ledger, presente no filme O Cavaleiro das Trevas, de 2008. Para mim, o filme definitivo de super-heróis, diga-se de passagem. Mas recentemente foi anunciado um filme solo do personagem, protagonizado por Joaquin Phoenix e dirigido por Todd Phillips. É sobre este filme que falaremos, mas não somente. Irei responder à pergunta que não quer calar: qual é o melhor Coringa de todos? Será mesmo o do Heath Ledger? Ou o do Joaquin Phoenix?


Coringa (2019) conta a história de Arthur Fleck, um homem que sofre de um distúrbio mental que o faz não ter controle do próprio riso. Ele vive uma vida complicada, sofrendo preconceito pela sua doença e sendo constantemente abusado pela sociedade. É neste cenário que Fleck acaba se transformando no Coringa, o icônico vilão dos quadrinhos, e arqui-inimigo do Batman.

(ALERTA SPOILERS)

O longa de Todd Phillips é maravilhoso. A começar pela atuação de Joaquin Phoenix, que se dedica ao máximo no papel. Seus movimentos corporais, olhares, tom de voz, traduzem perfeitamente a angústia de Arthur, sua condição e especialmente sua transformação ao longo do filme. Ele absorve completamente os sentimentos do personagem, de forma que sintamos empatia, apesar de suas atitudes. Especialmente no começo, estar rindo mas se sentir triste ou angustiado, é particularmente difícil, e Phoenix consegue fazer isso incrivelmente bem. O resto do elenco também é muito bom - destaque para a participação de Robert DeNiro, em um papel particularmente referencial a O Rei da Comédia e Taxi Driver (ambos filmes de Martin Scorsese, que esteve envolvido inicialmente na produção de Coringa).

Mas o filme não se sustenta somente nas atuações. A direção é precisa e eficiente. Junto à direção de fotografia e de arte, consegue transmitir a sensação de sujeira e decadência de Gotham City, que desde sua gênese é baseada em Nova Iorque. A direção de arte merece um destaque a mais; os figurinos, a ambientação são muito bem planejados, e colaboram para trazer o clima pesado da cidade, e da vida de Arthur. A fotografia toma aspectos esverdeados inicialmente, e vai se transformando junto ao protagonista, captando muito bem as nuances emocionais da história. O que nos leva ao roteiro, um dos maiores trunfos de Coringa.

(Crédito: Divulgação - Warner Bros.)

O roteiro de Todd Phillips e Scott Silver acerta na abordagem, desenvolvendo a história gradualmente, de forma que o clímax, mesmo que sem uma grande batalha regada a efeitos especiais, tome proporções imensas. Mais que tudo, os roteiristas conseguem fazer com que ao mesmo tempo o público sinta empatia e repulsa pelo personagem. Arthur Fleck é constantemente ignorado, deixado de lado, agredido, iludido e abusado. Nos conectamos imediatamente com a situação, sentido pena da vida sofrida que ele tem. O caminho que ele opta, entretanto, é o da "maldade", do crime, da loucura. Ele se entrega ao caos, assim se tornando o personagem que conhecemos como Coringa. Em nenhum momento é justificada a sua violência, os crimes continuam sendo crimes, mas compreendemos melhor o que ele sente, e qual o papel da sociedade na construção de um indivíduo.

Há uma cena-chave para tal reflexão. Arthur vai ao programa de auditório de Murray Franklin, e o assassina ao vivo. É a gota d'água de sua transformação. É a morte de Arthur Fleck, e o nascimento do Coringa. Dito isso, posso dizer que um dos maiores méritos do longa é sua construção de personagem. Mesmo os coadjuvantes, todos têm sua função na narrativa, nada é ao acaso. É interessante perceber também que não há nenhuma cena em que Arthur não esteja presente, o que fortalece mais o aspecto de ser a visão dele, e de mais ninguém. Pode ser que seja tudo fruto de alucinações, ou pode ser que tenha acontecido mesmo. Não temos certeza de nada. O que condiz com a personalidade misteriosa do Coringa nos quadrinhos, e sua imprevisibilidade.

Real ou não, a visão final de Arthur - ou Coringa já - em cima da viatura policial, cercado de admiradores, marcando sua boca com sangue, é aterradora. E o que assusta mais é que, ao contrário de todos outros Coringas, esse é o mais real de todos. Pode ser qualquer um. No fim das contas, o que mais assusta não é a ficção, e sim a realidade.

NOTA: 10 / 10

(Crédito: Divulgação - Warner Bros.)

Mas então o Coringa de Joaquin Phoenix é o melhor de todos? Não. Então é o de Heath Ledger? Não. Não há um melhor Coringa. Cada ator que viveu o personagem trouxe uma abordagem, de forma que um não seja melhor que outro. Cesar Romero viveu um Coringa mais cartunesco na série/filme dos anos 60. Jack Nicholson manteve o tom cartunesco mas adicionou aspectos sombrios (parcialmente ligado à estética de Tim Burton). Heath Ledger trouxe a característica de "agente do caos". Mesmo Jared Leto, apesar das interferências do estúdio e do roteiro falho de Esquadrão Suicida, teve seus momentos. Se fosse compará-los, diria que os dois melhores foram Heath Ledger e Joaquin Phoenix. Ambos têm suas particularidades, mas se complementam.

Reassisti à O Cavaleiro das Trevas recentemente, e pude observar o quão bem escrito é o roteiro do filme, e particularmente a construção do personagem Coringa. Apesar de coadjuvante, ele toma o filme para si, e fazendo um comparativo, pode ser visto como uma evolução do Coringa de Phoenix. No filme de 2019 vemos um Coringa em construção, abraçando o caos. Em O Cavaleiro das Trevas vemos o Coringa já imerso no caos, quase como uma figura onisciente: ninguém sabe sua identidade, de onde vem, onde mora. Ele age nas sombras, com a finalidade de mostrar que todos somos corruptíveis, inclusive o Batman.

No fim das contas, podemos observar que, independentemente de quem o interpreta, o Coringa é um dos personagens mais intrigantes e emblemáticos já criados. Joaquin Phoenix não será o último a interpretá-lo; outros virão certamente. E agora, mais que nunca, ele vive além da sombra de Batman.

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