Cigarro, maldito cigarro.
Já pensei em inúmeras maneiras de começar esse texto, sob diversos vieses. Decidi simplesmente começar a escrever, assim como simplesmente puxo um cigarro da carteira e acendo. Quando falamos sobre cigarro, o primeiro pensamento que vem à cabeça é aquele presente no verso das carteiras - todas complicações e doenças provocadas pelo tabaco. De fato, é mais que comprovado hoje em dia que o cigarro é causador de inúmeros problemas de saúde, mais notavelmente câncer de pulmão. Mas meu intuito não é questionar isso, já que são fatos inegáveis. Pretendo observar aqui o cigarro sob outra ótica.
Muitos fumantes lembram do primeiro cigarro, aquela sensação geralmente sem gosto. Foi assim comigo. Assim como muitos, problemas pessoais e uma fase ruim me levaram a querer experimentar aquele cilindro que via as pessoas segurando e consumindo rotineiramente na rua. Foi dia 8 de março de 2022 quando fumei pela primeira vez. Fumei três cigarros mas não adiantou, não gostei. Pensei na época - até que é ok, tem gosto de nada, se não fosse tão danoso para a saúde até fumaria. Ledo engano. O que veio depois foram meses como "fumante social", fumando somente aos finais de semana e em pequenas quantidades, até comprar minha primeira carteira. Camel Azul. Porque "era mais leve". O tempo passou e, o que antes era um tabagismo social, foi virando algo cada vez mais frequente. Me achei nos filtros vermelhos, o clássico Camel Vermelho, e assim o cigarro virou meu maior companheiro, para as horas de alegria, tristeza, decepção, ansiedade...
Muito além do alto potencial viciante da nicotina, o cigarro costumava ser vendido como um estilo de vida, muito reforçado por propagandas e presença constante em filmes hollywoodianos. Fumar era legal. Todos nossos ídolos fumavam ou fumam até hoje, mas especialmente antigamente esse pensamento de "fumar é legal" permeava nossa sociedade. Era visto como um ato chique, desejável, charmoso, sociável. Hoje em dia, ainda que bastante glamourizado, o cigarro perdeu parte do charme justamente por haver muito mais pesquisas comprovando o óbvio - cigarro mata - e pela proibição das propagandas. Mesmo assim, especialmente entre os jovens, ainda é visto como um "facilitador social", uma fácil armadilha para um fim precoce e doloroso.
Cigarro é acessível. Basta virar a esquina que se encontra uma tabacaria, e lá, inúmeras caixinhas com 20 cones de veneno por um preço geralmente bastante acessível. Cigarro é social. Que fumante nunca puxou assunto com outro usando o isqueiro como motivador? Cigarro é artístico. A fumaça intrigante que cobre a tela e compõe planos lindos de diretores como Kar-wai e Almodóvar. Já não basta o impulso da juventude, a ideia de rebeldia, somos todos incentivados a fumar. Ainda hoje. Mesmo que não nos demos conta.
Parar de fumar não é fácil, mas basta quebrar as dependências químicas e psicológicas (o que é uma jornada e tanto) que se consegue. É difícil mas não é um bicho de sete cabeças. Há inúmeros suportes para parar de fumar - medicamentos, adesivos de nicotina, auxílio terapêutico, grupos de apoio ou até um incentivo de família e amigos. A abstinência é algo que assusta muitos fumantes, e esse medo é um dos principais fatores que fazem fumantes não conseguirem parar de fumar. É uma abstinência fulminante. Já é comprovado que parar de fumar é uma tarefa mais árdua que parar de consumir cocaína.
Um dos meus ídolos de vida, meu maior ídolo, é o David Bowie. Bowie foi um artista único, que marcou não só a música mas também a moda, a pintura e o cinema. Não há quem não reconheça a figura clássica de Aladdin Sane (constantemente confundida com Ziggy Stardust, a persona anterior). Bowie é pop. Bowie é rock. Bowie é experimental. Bowie é contemporâneo. Bowie é fumante. Um fumante inveterado. Inclusive, muito provavelmente sua causa de morte veio por causa do tabaco, o câncer de pâncreas que ceifou sua vida aos 69 anos em 2016.
Em vida, David Bowie costumava fumar cerca de 60 cigarros por dia. Em sua última década de fumante, ele fumava Marlboro Light - que você encontra em qualquer tabacaria mesmo em Porto Alegre. Eu já fumei Marlboro Light. Posso dizer que eu, e muitos outros artistas fumantes, temos isso em comum com David Bowie. O cigarro o acompanhou por grande parte de sua vida, inicialmente sendo algo performático, em seguida virando uma necessidade. Bowie também foi viciado em cocaína, e de acordo com ele mesmo, largar a nicotina foi mais difícil do que largar o pó. Vem dele, não somente, meu entusiasmo por fumar e meu ranço por cocaína.
Não somente ele. Inúmeros artistas que admiramos, como David Lynch por exemplo, são fumantes muito famosos no meio da arte. Rita Lee foi uma grande artista e grande fumante. O cigarro parece acompanhar os artistas, como um companheiro de criação, seja que forma de arte o artista fizer. O cigarro, ainda hoje, tem um apelo muito forte no meio artístico, tendo uma imagem de irreverência e rebeldia perante a sociedade. É um cheiro bem ruim, mas a fumaça não é linda em tela? Cigarro é imagético, e justamente por ser imagético, pode servir tanto como a expressão dos sentimentos de uma personagem quanto como, inclusive, parte importante da narrativa.
Para a gravação de filmes e obras audiovisuais são usados cigarros "de mentira"; até onde sei, o que é fumado em tela seria uma espécie de kumbaya, que, sendo enrolado em uma seda e com filtros idênticos a um cigarro industrial padrão, convencem o espectador que a personagem está realmente fumando. Logicamente alguns diretores, especialmente antigamente, gravavam ou gravam com cigarros reais. Mas independente de serem reais ou "de mentira", o cigarro está ali, infiltrado no meio da arte.
Eu mesma. Muito fiz trabalhos que, se não giram em torno de tabagismo, têm a constante figura do cigarro e da fumaça, essa cortina de fumaça que se agrega à poesia e ao sentimento da personagem. A personagem. Afinal, muitas vezes fumamos socialmente, porque alguém acendeu um cigarro - por que não acender um para acompanhar? Muitas vezes, nós, fumantes, somos personagens. Após inúmeras tentativas de parar tenho conseguido perceber claramente quando eu quero fumar e quando eu apenas acendo um cigarro para... acompanhar a manada.
Ao contrário da introdução, não pensei em um nenhum desfecho específico para esse texto. O caminho natural seria trazer a lição moral de sempre, de que fumar é ruim para a saúde. Sim, pare de fumar de fato. Mas no fim do dia o cigarro vai estar lá, de uma maneira ou outra. A indústria tabagista não irá parar por você. Nicotina é uma substância química. Uma fórmula - C10H14N2. Não possui sentimentos. Somos nós que, seja através da arte ou da vida, associamos sentimentos ao cigarro. Da mesma maneira, somos nós que decidimos o que fazer com ela. Levo comigo meus um ano e meio de fumante e uma determinação maior para entender o que quero fazer com ela. Só mudei de marca - adotei meu Winston Vermelho. E você, o que te leva a fumar?
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