O polo sul-coreano de cinema há tempos vêm se consolidando como um dos mais fortes. Recentemente, o filme Parasita fez história no Academy Awards, e consolidou de vez o cinema sul-coreano na cultura pop. Outro filme muito importante, um dos maiores sucessos comerciais do país, é Oldboy - obra-prima de Park Chan-wook, adaptada de um mangá de mesmo nome. Mas sabia que Oldboy faz parte de uma trilogia?
Mr. Vingança é o filme mais político dos três, e o mais cru. Esta palavra, inclusive, o define muito bem - sem muita edição, a maioria dos cortes secos, o longa se destaca pelo trabalho de montagem. A linguagem e o ritmo tradicionais do cinema asiático são bastante presentes. A duração longa dos planos traz uma atmosfera contemplativa que funciona muito bem, reforçada pela decupagem, cujos planos mais abertos traduzem perfeitamente a solidão dos personagens e a frieza da vingança.
Isso é uma análise técnica. E pensando bem, cai como uma luva a Mr. Vingança. A história é incisiva em sua crítica, trabalhando (escolha interessante de vocabulário) temas como desigualdade trabalhista e tensões político-sociais. Há uma evidente crítica ao capitalismo e ao modelo industrial, que gradualmente se transforma na corrupção moral - Ryu, que começa com boas intenções, acaba causando a morte de uma criança, e então perde o controle. Dong-jin (o Song Kang-ho de Parasita), que é o suposto antagonista, também é consumido pela vingança desenfreada após a morte da filha. Essa dualidade moral é um elemento-chave da trilogia, e aqui surge com muita força, nos atingindo como uma faca. Sim, isso é um paralelo com os cortes secos.
Uma personagem muito interessante é Yeong-mi, uma ativista política que acompanha o protagonista Ryu em sua jornada de vingança. A relação deles com a filha de Dong-jin é bem interessante - ela tem um fim trágico, mas em vários aspectos ela é melhor cuidada pelos dois sequestradores do que por sua própria família. Importante destacar também o fato de Ryu ser deficiente auditivo. Ainda que não seja um ator com deficiência auditiva, é um aspecto relevante e que ajuda na visibilidade de pessoas PcD (nota do autor: não possuo esse lugar de fala, então se você é leitore PcD, viu o filme e gostaria de agregar nessa discussão, deixe nos comentários).
Mr. Vingança, além disso tudo, também nos apresenta a algumas características autorais do diretor, como a simetria dos planos, e uma tendência a planos centralizados - mais do que nos outros dois, há vários planos nesse formato. É um trabalho exemplar de composição, que sabe usar do ambiente para construir sua imagem e suas mensagens. Destaque para o momento em que Ryu sobe a escadaria com os traficantes de órgãos - a câmera aproveita a dimensão das paredes e faz uma forma quadrada, que gradualmente se afasta. Da mesma maneira a imagem petrificante da filha de Dong-jin morta na água, ou até mesmo um simples plano de duas pessoas conversando, que é dividido por uma parede imensa que cobre seus rostos. Vários exemplos mais podem ser citados, mas esses são alguns dos que mais chamam a atenção.
Oldboy é de longe o mais conhecido dos três, e seguramente pode ser dito: é o melhor. A premissa é a mesma do mangá (sim, tenho e já li todos volumes), mas há diversas alterações, em especial no ato final. É o mais dramático, em um conceito quase que de tragédia grega; ainda assim, há momentos esporádicos que, mesmo que não engraçados propriamente, possuem um certo humor ácido bem sutil (por exemplo, o momento em que Oh Dae-su conta sua história e abandona o homem no topo do edifício). Difícil descrever.
Esse drama é acentuado pela trilha sonora de Jo Yeong-wook, altamente melódica (e certamente uma das melhores dos últimos tempos). Outro elemento essencial é a edição - Oldboy é muito mais editado que Mr. Vingança. Os cortes são mais dinâmicos, tornando o ritmo mais intenso, frenético, e de certa maneira mais acessível para alguém ocidental que está se adentrando no cinema asiático. E claro, as atuações acompanham isso, em especial a do grande Choi Min-sik. Um dos maiores e mais conhecidos atores sul-coreanos, sua interpretação de Oh Dae-su é intensa e memorável, em especial no ato final. Yoo Ji-tae também se doa ao personagem, conseguindo transmitir uma humanidade tremenda por trás da fachada de vilão de Lee Woo-jin.
E precisamos falar do final. A revelação do parentesco de Dae-su e Mi-do é um dos plot twists mais bem construídos da história do cinema. Toda a simbologia da língua e do falar, da boca - Woo-jin estimula sua irmã dessa maneira, Dae-su espalha a notícia no boca-a-boca, e também tortura Cheol-woong arrancando seus dentes... Há uma tensão contínua em volta da comunicação, que dialoga com toda a situação do protagonista com Woo-jin.
O momento da língua, talvez a cena mais tensa do filme inteiro, é um exemplo perfeito da direção de Chan-wook: não apenas a edição, a fotografia não nos entrega o ato em si, nos deixando somente com o olhar de dor do personagem, e somos guiados pelo som - seus gritos atordoantes. E após toda a tragédia, o choro, Oh Dae-su decide deixar isso de lado e rir.
Ria e o mundo rirá com você. Chore e chorará sozinho.
O final do mangá é bem diferente. Posso trazer uma comparação entre filme e mangá em outro momento.
Mas a trilogia acaba com Lady Vingança. O mais intermediário dos três, é um filme que retoma alguns elementos de Mr. Vingança - como alguns planos contemplativos - junto a outros de Oldboy - cortes mais acentuados, entre outros. Quanto à linguagem é o menos impressionante, flertando com um estilo quase ocidental; o melhor do filme está no roteiro, que mesmo que demore um pouco para engrenar, propõe um debate então inédito na trilogia, relativo à justiça com as próprias mãos. Sim, é um tema que é abordado nos demais, mas aqui toma uma dimensão muito maior, em particular no ato final.
Choi Min-sik retorna, dessa vez como o antagonista, e é o único dos três protagonizado por uma personagem feminina, a Lee Geum-ja (vivida por Lee Yeong-ae). Outro aspecto importante do filme, inclusive, é a visão feminina, em especial na primeira metade - dialoga bastante com uma produção posterior de Chan-wook, A Criada. Há uma mensagem de empoderamento muito importante, ressaltada nos segmentos da prisão e na interação das detentas. A edição um tanto quanto caótica no começo atrapalha um pouco a imersão, mas a apresentação das (várias) personagens se faz importante. Tudo faz parte do plano de Geum-ja.
O tema principal (e que o conecta com os outros dois), ainda assim, é a justiça. O quão (in)eficiente ela é? Até que ponto é certo nos vingarmos de alguém com as próprias mãos? Provavelmente a cena mais marcante nesse filme é o momento em que as famílias das vítimas se vingam do senhor Baek. É uma catarse narrativa. A maneira que a situação é executada é assustadoramente real, evitando uma romantização em torno do momento. Para que funcione tão bem, as conversas entre os ataques são essenciais. São pessoas destruídas por dentro; mesmo que conscientes que seus filhos não vão voltar, só querem extravasar isso. E Geum-ja cumpre seu papel de justiceira - talvez a mais próxima disso dentre os personagens apresentados na trilogia.
E no final do dia, a vida segue. De uma maneira ou outra, Geum-ja continua em pedaços. Talvez ela não possa ter a vida que desejava ao lado da filha, mas agora vai poder finalmente se reconstruir.
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