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Mank (2020)

 


O roteiro é uma parte essencial do processo audiovisual - não é exagero dizer que sem ele não há filme. Infelizmente, a visibilidade dada aos roteiristas é mínima. Geralmente quem recebe todos méritos é a direção, sendo que na maioria das vezes nem é a mesma pessoa que dirige e escreve. Se fôssemos entrar no mérito de "posse", o filme pertence à produtora, logo o filme não é do diretor, mesmo que este seja responsável por diversas decisões importantes. Nesse contexto tão atual, filmes como Mank se fazem importantes. Escrito por Jack Fincher e dirigido por David Fincher (pai e filho, respectivamente), a história acompanha a vida de Heman J. Mankiewicz, mais conhecido como Mank, um talentoso e excêntrico roteirista que, junto a Orson Welles, foi responsável por dar vida a Cidadão Kane - mas por muito tempo teve sua figura rebaixada diante da figura do diretor.

É um dos trabalhos mais pessoais de Fincher, mas ao contrário de Roma - que o motivou a revisitar esse roteiro de seu falecido pai - o resultado final é um filme lindo esteticamente mas bastante distante e com ritmo inconstante. O roteiro é bem escrito e funciona bem, em especial os diálogos. Ainda assim, encontra alguma dificuldade em abordar o fazer roteiro, um aspecto que não é narrativamente "crucial" mas iria auxiliar muito na imersão. Talvez o melhor exemplo disso seja a rapidez com que Mank vai de 90 para 200 páginas (ou algo em torno disso), sem nem vermos o processo, ou um mínimo dele. É um filme sobre um roteirista no qual quase não o vemos escrever. Trumbo, de 2015, acerta muito mais nesse sentindo, conseguindo ser ainda mais crítico que Mank.

Mas o grande problema está na direção de Fincher. Não há um equilíbrio entre o passado e o presente, com uma montagem tão fragmentada que atrapalha o andamento da história, e chega a confundir em alguns momentos quem assiste. A primeira metade é carregada de personagens e informações, que para quem não é do meio pode se tornar de difícil compreensão, e que são trabalhadas em um ritmo lento e contemplativo. Só que, assim como em O Irlandês, isso se torna um tanto quanto cansativo, exigindo uma certa paciência por parte dos espectadores. Na segunda metade o filme ganha um novo fôlego e estabiliza seu rimo, ainda que o ato final seria muito mais beneficiado se houvesse menos transições temporais.


(Crédito: Divulgação - Netflix)

Há, também, uma sensação de prioridade à ambientação e aos diálogos do que à caracterização e desenvolvimento de personagem. O elenco é ótimo: Gary Oldman está espetacular como sempre, e Amanda Seyfried dá um show de atuação, mesmo com pouco tempo de tela. Só que as performances não se tornam emocionantes, já que a direção de Fincher, intencionalmente ou não, nos distancia dos personagens. Em outras palavras, é difícil criar conexão com eles, o que acaba sendo ruim, pois passamos a nos importar menos com o que está acontecendo.

Em compensação, Mank é lindo visualmente, e tem tudo para dar uma limpa nas categorias técnicas. É um dos filmes de época mais bem executados, com uma direção de fotografia em preto e branco impecável, composições brilhantes e movimentos de câmera precisos - e um dos melhores e mais conscientes trabalhos de som que vi, ou ouvi, nos últimos tempos. A edição e mixagem de som, e provavelmente a captação também, soam como se pertencessem a um filme da época mesmo, com um certo eco nas vozes e uma ambientação sonora perfeita.

Mank está longe de ser um filme ótimo, mas se destaca muito visual e plasticamente, além de trazer uma mensagem muito importante ainda hoje: nós, roteiristas, também temos direitos.


Mais sobre a temporada de premiações: 

A Voz Suprema do Blues - https://bit.ly/3qX3Nir
Uma Noite em Miami - https://bit.ly/39FAT0n

Letterboxd:

lucasnoronha99 (https://bit.ly/3dbE2p5)

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